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Peru em lockdown devido à COVID-19 enquanto variante brasileira revela a verdade sobre a política assassina de “imunidade de rebanho”

Publicado originalmente em 9 de fevereiro de 2021

O governo do Peru impôs outro lockdown de duas semanas em 31 de janeiro, numa tentativa de combater um novo colapso do sistema de saúde do país. Familiares de doentes da COVID-19 têm esperado nas ruas por até três dias para encher cilindros de oxigênio para salvar suas vidas, e o número de mortes diárias aumentou para mais de 180 em um país de apenas 32 milhões de habitantes. Os números do final de janeiro mostram 600 mortes adicionais no país em comparação com janeiro de 2020, apontando para uma vasta subestimação da já alarmante taxa de mortes por COVID-19.

O novo lockdown envolve uma proibição total de viagens terrestres e aéreas para dentro ou fora de 10 das 26 regiões do país, incluindo a capital, Lima. Ele permite que cada pessoa saia de sua casa por apenas uma hora por dia. Antes da segunda onda da pandemia no hemisfério norte causada pela manutenção assassina de uma "economia aberta" para a temporada de férias, o Peru tinha a maior taxa de mortalidade per capita do mundo, uma situação que o novo confinamento mostra que pode se repetir nos próximos meses.

Cemitério Parque Tarumã em Manaus. Crédito: Bruno Kelly

O Peru registrou oficialmente até agora mais de 42.000 mortes por COVID-19 e cerca de 1,2 milhões de casos. Entre os mais atingidos estão os profissionais de saúde peruanos, com quase 300 médicos tendo morrido de COVID-19 desde o início da pandemia, juntamente com mais de 100 enfermeiros.

O consenso médico é que o número real de infecções e mortes é muito maior, já que o país tem uma taxa de apenas 200.000 testes por milhão de habitantes.

Esta taxa é apenas um quinto da dos Estados Unidos, cuja testagem sofreu uma sabotagem aberta da administração Trump a fim de ocultar a extensão da propagação da pandemia. Ao mesmo tempo, a taxa de testes peruana é muito mais alta do que em países vizinhos como o Brasil e a Argentina, onde é de apenas 140.000 por milhão, e México e Bolívia, onde a taxa é inferior a 50.000 por milhão.

A capital da Amazônia peruana, Iquitos, foi deixada de fora do lockdown, após já ter registrado casos da nova variante brasileira do vírus encontrada pela primeira vez em viajantes de Manaus. Suspeita-se que esta nova variante seja um fator importante no horrível colapso da infra-estrutura sanitária da capital amazônica brasileira. As autoridades estão sendo forçadas a evacuar nada menos que 1.500 pacientes de Manaus para evitar mais mortes devido à falta de oxigênio. O departamento peruano de Huánuco e a capital Lima também registraram casos da variante brasileira. Na vizinha Bolívia, mais de 100 cidades tiveram seu status de alerta para COVID-19 elevado ao máximo na semana passada, mas ainda não foi anunciado nenhum bloqueio.

Paralelamente ao aumento de casos na América Latina ocorre o aumento sem precedentes na demanda de oxigênio medicinal, que agora é quase o triplo da taxa de produção e distribuição em Manaus, e aumentou mais de 700% no México de 20 de dezembro a 20 de janeiro, de acordo com as autoridades locais. Tanto no México quanto no Peru, os especuladores da pandemia triplicaram o preço dos cilindros de oxigênio.

Com uma média móvel de mais de 1.000 mortes e 45.000 novos casos no Brasil há 18 dias, a falta de oxigênio já está ameaçando a maior e mais rica cidade do Brasil, São Paulo, que já recebeu pacientes de todo o país. O principal produtor de oxigênio medicinal, White Martins, notificou as autoridades locais da cidade que irá retirar cilindros de oxigênio de 3.000 usuários domésticos, a fim de evitar um colapso na distribuição para hospitais. Do norte ao sul do Brasil, nove estados têm mais de 80% das UTIs dedicadas à COVID-19 ocupadas, enquanto a capacidade de expansão é limitada nos hospitais, que lutam para tratar pacientes que evitaram ou não conseguiram encontrar atendimento médico durante a pandemia, levando ao surgimento ou agravamento de outras doenças.

A nova variante brasileira, denominada P.1 pela comunidade científica, compartilha muitas características genéticas com as variantes do Reino Unido e especialmente com a sul-africana, que se acredita serem mais contagiosas do que a cepa original de Wuhan. No caso da variante sul-africana, ensaios clínicos já identificaram uma diminuição dramática na eficácia de duas das mais novas vacinas, das empresas Novavax e Johnson & Johnson. A vacina da Novavax teve sua eficácia reduzida de 89% no Reino Unido para apenas 50% na África do Sul, onde a nova cepa já é dominante, enquanto a vacina da Johnson & Johnson viu sua eficácia cair de 72% nos EUA para apenas 57% na África do Sul.

A variante P.1 foi detectada originalmente no Japão, após o sequenciamento genético de amostras coletadas de portadores do SARS-CoV-2 vindos de Manaus. As autoridades japonesas notificaram seus homólogos internacionais em 10 de janeiro, e até 27 de janeiro oito países, incluindo a Coreia do Sul, os Estados Unidos e vários países europeus, já haviam registrado casos da nova variante. Pesquisadores brasileiros concluíram que a nova variante agora representa pelo menos 91% dos casos em Manaus, contra 50% em dezembro.

O ressurgimento da COVID-19 na região amazônica que liga o Brasil e o Peru é o produto direto das políticas assassinas de imunidade de rebanho aplicadas pelas classes dominantes internacionalmente, e ressalta sua total falência. Manaus foi palco de algumas das cenas mais aterrorizantes da pandemia internacionalmente em meados de 2020, com imagens de centenas de novas sepulturas sendo cavadas circulando ao redor do mundo.

Em setembro, um estudo preliminar estimou que 76% da população da cidade já havia contraído a COVID-19. As autoridades locais se gabaram de que a cidade havia alcançado a "imunidade de rebanho", usando isto como pretexto para reabrir escolas e enviar 110.000 alunos de volta para suas salas de aula - 5% da população da cidade. O estudo de Manaus foi aceito para publicação na prestigiosa revista Science, mas apareceu apenas em janeiro, quando a cidade já estava vendo um salto de 600 por cento das mortes por COVID-19 a partir de dezembro.

Na mesma edição de 15 de janeiro da Science em que apareceu o artigo sobre a taxa de infecção de Manaus, foi publicado um artigo na seção de perspectivas dos especialistas em saúde britânicos Devi Sridhar e Deepti Gurdasani, revisando os dados de Manaus. Eles advertiram diretamente em seu título: "A imunidade de rebanho por infecção não é uma opção".

Eles escreveram: "O que as descobertas de Buss et al. mostram definitivamente é que a busca de imunidade de rebanho por infecção adquirida naturalmente não é uma estratégia que possa ser considerada. Alcançar a imunidade de rebanho através da infecção será muito caro em termos de mortalidade e morbidade, com poucas chances de sucesso". O artigo concluiu: "Mesmo uma estratégia de mitigação na qual ao vírus é permitido se espalhar pela população, com o objetivo de manter as internações abaixo da capacidade hospitalar, como é feito para o vírus da influenza, é claramente equivocada para o SARS-CoV-2".

A mesma conclusão foi alcançada quase simultaneamente por outra equipe de especialistas brasileiros que teve seu trabalho publicado na Lancet em 27 de janeiro. Intitulado "Ressurgimento da COVID-19 em Manaus, Brasil, apesar da alta soroprevalência", o artigo também levantou a possibilidade de que o surto de Manaus pudesse estar relacionado à evasão da imunidade adquirida anteriormente pelas novas variantes. O artigo da Lancet também levanta o ponto crucial de que a mesma taxa de infecção - ou "taxa de ataque", como é chamada pelos imunologistas para diferenciá-la de infecções ativas - foi encontrada na capital da Amazônia peruana, Iquitos. Na época, a agência de notícias espanhola EFE publicou uma reportagem intitulada "O estranho caso da cidade peruana onde o coronavírus 'desapareceu'", levantando também a perspectiva perigosa e infundada de que a "imunidade de rebanho" tinha sido alcançada na cidade.

Lucas Ferrante, o autor principal de um artigo da Nature Medicine de 7 de agosto, intitulado "As políticas brasileiras condenam a Amazônia a uma segunda onda da COVID-19", disse ao Intercept em 3 de fevereiro que a nova linhagem brasileira pode transformar Manaus no epicentro de uma mortal terceira onda internacional da pandemia. Expressando com a máxima clareza o entendimento científico da dinâmica do surgimento de novas variantes, ele disse que a nova variante foi "causada pela segunda onda" sobre a qual sua equipe havia advertido em agosto. Ele concluiu: "Ou se fecha toda Manaus agora ou Wilson Lima [governador] e o presidente Bolsonaro serão responsáveis pelo impacto de mais contaminações e mortes na república e no mundo".

Mesmo neste momento, as autoridades de Manaus se recusam a fechar os serviços não-essenciais. Na segunda-feira, Ferrante enfatizou ao Estado de S. Paulo: "é impensável a volta às aulas presenciais para qualquer local do Brasil neste momento, justamente para impedirmos o espalhamento da variante que surgiu no Amazonas. Recomendamos o fechamento também das fábricas e do Distrito Industrial em Manaus,” acrescentando que isto poderia ser feito "sem deixar de pagar o salário de seus funcionários.”

Na verdade, a cidade tem sido um alvo central da política de imunidade de rebanho de Bolsonaro. O presidente e seus filhos - especialmente Eduardo, o presidente da Comissão de Relações Exteriores na Câmara dos Deputados, que foi um convidado especial na Casa Branca de Trump durante a preparação para o putsch de 6 de janeiro - celebraram a "libertação" da cidade no final de dezembro, quando as autoridades decidiram "reabrir a economia". A decisão veio depois de um protesto pequeno e em grande parte encenado contra as restrições, por parte de um punhado de apoiadores de Bolsonaro. Seu caráter foi o mesmo dos protestos encenados contra os lockdowns com a presença de milícias de direita em Michigan e em outros estados dos EUA.

A reabertura de Manaus foi o ato mais flagrante no que foi recentemente descrito por especialistas legais da Universidade de São Paulo (USP) como uma "estratégia institucionalizada de propagação do coronavírus" pelo governo Bolsonaro. Uma equipe jurídica coordenada pela especialista em Saúde e Ética Global da USP, Deisy Ventura, em colaboração com o grupo de defesa dos direitos humanos Conectas, foi capaz de documentar uma linha do tempo de ações tomadas pelo governo Bolsonaro, incluindo decretos federais, a promoção de curas falsas e a sabotagem de qualquer medida que restringisse a economia.

Esta linha do tempo, juntamente com a disseminação descontrolada ao redor do mundo de novas variantes mais mortíferas do SARS-CoV-2, é um testemunho da unidade essencial das classes dominantes internacionalmente na promoção da disseminação do vírus em nome da "imunidade de rebanho", apesar da linguagem um pouco mais polida de alguns líderes europeus, do novo governo Biden ou dos rivais locais de Bolsonaro no Brasil. Contra exigências científicas claras, um estado após o outro está impondo a reabertura de escolas, com o governo de São Paulo se vangloriando de "liderar" a volta às aulas, impondo o retorno dos alunos em face de uma greve dos professores.

Manaus se apresenta como a Guernica da pandemia de Bolsonaro. Assim como o bombardeio punitivo da pequena cidade espanhola pelos fascistas em 1937 antecipou os horrores da Segunda Guerra Mundial, a política assassina perseguida na capital amazônica expõe a crueldade das classes dominantes e a carnificina da pandemia que está sendo desencadeada em todo o mundo.

Os trabalhadores de todo o mundo devem tomar em suas próprias mãos a luta contra a imunidade de rebanho, organizando um fechamento dos serviços não essenciais com compensação total para os trabalhadores e pequenos negócios arruinados, para impedir a propagação do vírus até que vacinas eficazes estejam disponíveis em todo o mundo.

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