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Perspectivas

A queda do regime fantoche do Afeganistão: Um fracasso histórico para o imperialismo americano

Publicado originalmente em 16 de agosto de 2021

A súbita queda do regime fantoche dos EUA no Afeganistão no domingo é um humilhante fracasso para o imperialismo americano. Ela marca o colapso de um regime que foi imposto através de uma guerra e ocupação criminosas, promovidas com base em mentiras, e mantidas no poder através de assassinatos, torturas e bombardeios a civis.

No início do domingo, o Pentágono anunciou que dois batalhões de fuzileiros navais e um batalhão de infantaria dos EUA estavam chegando ao Aeroporto Internacional de Cabul para apoiar o regime afegão. O presidente fantoche do Afeganistão, Ashraf Ghani, publicou um vídeo chamando as forças de segurança de seu regime para manter “a lei e a ordem”.

No entanto, as tropas do Taleban, após uma breve pausa na entrada de Cabul, tomaram pontos-chave na capital afegã durante o dia. Ao cair da noite, funcionários do Taleban relataram que haviam tomado o palácio presidencial e que logo anunciariam a formação de um novo governo. A base aérea de Bagram, a infame prisão e centro de tortura da OTAN, foi capturada pelo Taleban, que libertou os 7.000 prisioneiros ali mantidos.

Helicóptero Chinook americano sobrevoa a cidade de Cabul, no Afeganistão, em 15 de agosto de 2021. (AP Photo/Rahmat Gul)

No decorrer do domingo, Ghani e seu conselheiro de segurança nacional fugiram do país. Pela manhã, o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que as autoridades americanas estavam abandonando a embaixada e indo para o aeroporto de Cabul. Mas, à noite, os diplomatas americanos tiveram que admitir que Washington não controlava mais nem mesmo o aeroporto de Cabul e que os cidadãos americanos na capital do país foram instruídos a se esconder.

Em um artigo intitulado “Investida do Talibã no Afeganistão Segue Anos de Erros de Cálculo dos EUA”, o New York Times admitiu: “Os principais conselheiros do Presidente Biden admitiram estar atônitos com o rápido colapso do exército afegão diante de uma agressiva e bem planejada ofensiva do Taleban. ... Ainda no final de junho, as agências de inteligência estimaram que mesmo que o Taliban tomasse o poder, levaria pelo menos um ano e meio antes que Cabul pudesse ser ameaçada.”

Na realidade, o tão alardeado regime “democrático” estabelecido por Washington e seus aliados da OTAN no Afeganistão equivalia a um zero político. Mantido no poder apenas por dezenas de milhares de tropas da OTAN e aviões de guerra americanos, ele se dissolveu praticamente da noite para o dia com a retirada das tropas dos EUA e da OTAN.

Se os círculos dominantes americanos não estavam preparados para o súbito colapso do regime que sustentavam a um custo tão elevado, é porque em grande parte acreditavam em sua própria propaganda. Ao longo de duas décadas, nenhum grande jornal, rede de televisão ou grande mídia examinou esta guerra neocolonial de ocupação com um mínimo de honestidade.

Os custos humanos e sociais da guerra no Afeganistão são catastróficos. Os números oficiais, sem dúvida muito subestimados, afirmam que 164.436 afegãos foram mortos durante a guerra, juntamente com 2.448 soldados americanos, 3.846 mercenários americanos e 1.144 soldados de outros países da OTAN. Centenas de milhares de afegãos e dezenas de milhares de funcionários da OTAN foram feridos. O custo financeiro somente para os Estados Unidos está estimado em US$ 2 trilhões, que será financiado pela dívida que custará mais US$ 6,5 trilhões no pagamento de juros.

Os acontecimentos de ontem inevitavelmente lembram as famosas fotografias de diplomatas americanos embarcando em helicópteros no teto da embaixada em Saigon, há quase meio século, no final da Guerra do Vietnã. Em suas implicações e consequências políticas, porém, o fracasso dos EUA no Afeganistão é ainda mais significativo.

O colapso do governo afegão abala as concepções ilusórias que a classe dominante americana abraçou após a dissolução da União Soviética pela burocracia stalinista em 1991. O desaparecimento do principal rival militar de Washington foi visto pela classe dominante americana como uma oportunidade para superar seu declínio global e suas contradições internas através do uso da força. Os planejadores militares e de política externa dos EUA proclamaram um “momento unipolar” no qual o poder incontestável dos Estados Unidos supervisionaria uma “Nova Ordem Mundial” segundo os interesses de Wall Street.

A vitória dos EUA e seus aliados na primeira guerra contra o Iraque em 1991, antes do colapso final da URSS, foi considerada como uma demonstração de que a “Força Funciona!”, como o Wall Street Journal proclamou na época. O presidente George H. W. Bush declarou que, através de seu bombardeio criminoso contra um país em grande parte indefeso, o imperialismo americano havia “chutado a síndrome do Vietnã de uma vez por todas”. Um ano depois, em 1992, o Pentágono adotou um documento de estratégia declarando que o objetivo dos EUA era “desencorajar militarmente nações industriais avançadas de desafiar nossa liderança ou mesmo aspirar a um papel regional ou global maior”.

Na época do bombardeio da Sérvia pela OTAN em 1999, sob o governo Clinton, surgiu a ilusão de que o domínio americano em munições guiadas de precisão transformaria a política mundial e faria com que Washington se tornasse uma potência hegemônica mundial inquestionável. Em resposta a essas concepções, o WSWS escreveu:

Os Estados Unidos desfrutam atualmente de uma “vantagem competitiva” na indústria de armas. Mas nem essa vantagem nem os produtos dessa indústria podem garantir o domínio mundial. Apesar da sofisticação de seu armamento, a base econômico-industrial do papel de destaque dos Estados Unidos nos assuntos do capitalismo mundial é muito menos significativa do que era há 50 anos. Sua participação na produção mundial diminuiu drasticamente. Seu déficit comercial internacional aumenta bilhões de dólares a cada mês. A concepção que está por trás do culto das munições guiadas de precisão - que o domínio na esfera da tecnologia de armas pode compensar esses índices econômicos mais fundamentais de força nacional - é uma ilusão perigosa.

No contexto do projeto de conquista global, a guerra no Afeganistão foi vista como central para a estratégia americana de controle da Ásia Central e da “ilha mundial” da Eurásia, com o objetivo de fortalecer a posição do imperialismo americano contra a China, a Rússia e as potências imperialistas europeias. Após os ataques de 11 de setembro de 2001, o WSWS rejeitou os argumentos de que a invasão fazia parte de uma “guerra ao terror” contra a Al Qaeda e o Taleban, que eram eles próprios produto dos esforços dos EUA para desestabilizar a União Soviética duas décadas antes:

O governo dos EUA iniciou a guerra em busca de interesses internacionais de longo prazo da elite dominante americana. Qual é o principal objetivo da guerra? O colapso da União Soviética há uma década criou um vácuo político na Ásia Central, que é lar do segundo maior depósito de reservas comprovadas de petróleo e gás natural do mundo. ... Ao atacar o Afeganistão, estabelecer um regime clientelista e deslocar vastas forças militares para a região, os EUA pretendem estabelecer uma nova estrutura política dentro da qual exercerão um controle hegemônico.

Em 2003, os EUA invadiram o Iraque com base em alegações mentirosas proferidas por toda a mídia americana, que afirmavam que o governo iraquiano possuía armas de destruição em massa que daria à Al Qaeda. Comparando o ataque “não provocado” ao indefeso Iraque com a invasão nazista da Polônia em 1939 que deu início à Segunda Guerra Mundial na Europa, o WSWS escreveu:

Qualquer que seja o resultado das etapas iniciais do conflito que começou, o imperialismo americano tem um encontro com o desastre. Ele não pode conquistar o mundo. Não pode reimpor grilhões coloniais sobre as massas do Oriente Médio. Não encontrará, por meio da guerra, uma solução viável para suas enfermidades internas. Ao contrário, as dificuldades imprevistas e a crescente resistência gerada pela guerra intensificarão todas as contradições internas da sociedade americana.

Estas palavras ressoam poderosamente hoje em dia. Tomadas em conjunto, as guerras no Afeganistão e no Iraque, juntamente com a invasão da Líbia e a guerra civil instigada pela CIA na Síria, deixaram milhões de mortos e sociedades inteiras destroçadas. Longe de estabelecer o domínio global inquestionável do imperialismo americano, elas levaram a um desastre após o outro. As condições no Iraque, três décadas após a primeira Guerra do Golfo, são, por incrível que pareça, ainda piores do que no Afeganistão.

O Afeganistão é uma metáfora para todo o edifício apodrecido do capitalismo americano. Os déficits orçamentários dos Estados Unidos foram convertidos em papel através da impressão eletrônica de trilhões de dólares de capital fictício em fundos de “flexibilização quantitativa” entregues aos super-ricos em resgates bancários. O capital fictício no qual se baseia a economia da bolha do capitalismo americano pode ser comparado ao poder fictício conferido ao Pentágono pelas “bombas inteligentes” e pelos ataques com drones em países como o Afeganistão.

Um sério alerta está em jogo: elementos poderosos da elite dominante americana estão sem dúvida preparando muitos planos de emergência, cada um mais imprudente do que o anterior, para responder a esse descalabro. Eles não têm a intenção de simplesmente continuar perdendo prestígio e credibilidade para um movimento islâmico equipado apenas com armas leves em um dos países mais pobres e mais devastados pela guerra do mundo.

As observações do ex-diretor da CIA e General aposentado do Exército David Petraeus em uma entrevista de rádio na sexta-feira apontam para as discussões que acontecem nos bastidores. Classificando a posição americana no Afeganistão como “desastrosa”, Petraeus declarou: “Este é um enorme revés de segurança nacional, e está à beira de ficar muito pior a menos que decidamos tomar medidas realmente significativas”.

O exército dos EUA tem muito de seu prestígio investido no Afeganistão e no projeto mais amplo de conquista imperialista do qual fez parte. A classe dominante americana não abandonará seus esforços para controlar o mundo através da força militar, da qual depende sua riqueza.

Ao contrário do Vietnã, a classe dominante dos EUA não pode culpar o fracasso no Afeganistão por causa de um movimento antiguerra. Com a ajuda das organizações de classe média alta, que aderiram à “guerra ao terror” e ao “imperialismo dos direitos humanos”, a ampla oposição à guerra dentro dos Estados Unidos foi suprimida e dirigida por trás do Partido Democrata, que é, não menos que os republicanos, um partido de Wall Street e dos militares.

A resposta homicida da classe dominante à pandemia, entretanto, mostra que ela não tem mais apreço pela vida dos trabalhadores nos principais países capitalistas do que tem pelas massas na Ásia Central e no Oriente Médio. Apesar de a pandemia continuar a se espalhar, há expressões crescentes de oposição da classe trabalhadora.

O desenvolvimento dessa oposição em um movimento político consciente pelo socialismo está intrinsecamente ligado à luta contra a guerra imperialista. Essa é a lição fundamental de todo o desastre criminoso que é a guerra dos EUA no Afeganistão.

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