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O certificado de vacinação no Reino Unido: Corbyn, pseudoesquerda e sindicatos unem-se ao Partido Conservador e à direita libertária

Publicado originalmente em 31 de janeiro de 2022

A “esquerda” do Partido Trabalhista liderada por Jeremy Corbyn, a burocracia sindical e os grupos de pseudoesquerda estão se opondo à vacinação obrigatória no Serviço Nacional de Saúde (NHS) do Reino Unido, alegando defender os direitos democráticos dos trabalhadores de saúde.

Mas os verdadeiros interesses sociais por trás dessa campanha são evidenciados por seu alinhamento com os líderes de direita e antivacina do Partido Conservador, e pela crescente probabilidade de que isso aconteça à medida que o governo Johnson está se movendo para acabar com todos os esforços para controlar a disseminação da COVID.

O prazo para agendar a primeira dose da vacina contra a COVID para os funcionários da linha de frente do NHS é 3 de fevereiro, mas o Secretário de Saúde Sajid Javid já disse na quarta-feira passada que a política estava “sob revisão” e que o governo estava “ponderando sobre isso”. O Telegraph informou esta manhã que ele vai acabar com esse plano em breve.

Estimulado pela base do Partido Conservador no parlamento, o governo passou da estratégia de apenas vacinar a população, que colapsou sob a pressão da variante Ômicron mais transmissível e mais resistente à vacina que ajudou a produzir, para uma política de COVID-19 “endêmica”.

O governo abandonou todas as medidas de saúde pública contra a COVID e decidiu que todos, em algum momento, serão infectados pela Ômicron ou por outra variante. Até mesmo a exigência de auto-isolamento após um teste positivo deve acabar até março.

O ex-líder do Partido Trabalhista Jeremy Corbyn e seus aliados, os sindicatos e grupos como o Socialist Workers Party (SWP) e o Partido Socialista (PS) não se opuseram a nada disso. Pelo contrário, eles decidiram coletivamente se opor a uma única medida – a vacinação obrigatória no NHS.

O caminho foi apontado pelo voto de Corbyn contra o que é normalmente chamado de “passaporte de vacina” juntamente com as vacinas obrigatórias no NHS em 14 de dezembro, unindo forças com parlamentares do Partido Conservador que são contra lockdowns e o uso de máscaras. De fato, nunca houve a exigência de provar o status de vacinação para entrar em bares, boates e eventos esportivos, pois um teste negativo também tem sido aceito.

Em 18 de janeiro, Corbyn lançou um vídeo no YouTube reafirmando que “alguma coisa não se enquadra bem com a ideia de que você tem que ser obrigatoriamente vacinado”. O vídeo foi publicado por Corbyn mesmo sabendo que Johnson planejava anunciar o fim de todas as medidas para combater a pandemia, incluindo restrições à entrada em eventos sociais, o que se concretizou no dia seguinte.

Uma adaptação à política de infecção em massa

Corbyn é apoiado pelo SWP e o PS, com o SWP tendo publicado uma “Carta aberta contra a obrigatoriedade da vacinação”.

Suas justificativas declaradas são, em primeiro lugar, que a obrigatoriedade irá exacerbar a crise de funcionários no NHS, “mergulhando o serviço de saúde em sua maior crise até o momento” e aumentando a crise de “um serviço já sobrecarregado e de uma força de trabalho esgotada”. Em segundo lugar, que o governo não está “em posição de convencer os trabalhadores a se vacinarem”.

“Carta aberta contra a obrigatoriedade da vacinação” do SWP

Isso é extremamente cínico. A crise no NHS e o enfraquecimento do programa de vacinação são um produto da estratégia de “imunidade de rebanho” do governo que nem Corbyn nem essas organizações jamais se opuseram.

Corbyn até mesmo admitiu ter participado de reuniões governamentais discutindo a “imunidade de rebanho” na primavera de 2020, enquanto ainda era líder do Partido Trabalhista, e não disse nada durante meses. Ele iniciou a coalizão de fato com o governo conservador de Johnson que o atual líder trabalhista, Sir Keir Starmer, tem mantido. Os pseudoesquerdistas também se recusaram a organizar qualquer campanha séria para fechar locais de trabalho inseguros e eliminar o vírus.

Caso tivessem feito isso, teriam entrado em conflito com a burocracia sindical, na qual estão profundamente envolvidos e orientados de forma servil. Durante toda a pandemia, os sindicatos, liderados pelo Congresso dos Sindicatos (TUC), fizeram com que Johnson se esforçasse para manter os trabalhadores nos locais de trabalho e as crianças nas escolas em condições inseguras para satisfazer os lucros corporativos.

A campanha contra a vacinação obrigatória no NHS é um aprofundamento dessa adaptação à política de infecção em massa. No início deste mês, o TUC emitiu uma declaração defendendo que o esquema de vacinação obrigatório fosse “adiado imediatamente”. Algumas semanas depois, a Secretária Geral do TUC Frances O’Grady escreveu que os trabalhadores devem agora “aprender a viver com a COVID”. Ela continuou: “Finalmente está surgindo um novo normal nos locais de trabalho em todo o Reino Unido”, pois “entramos neste novo estágio de transição da pandemia para a endemia”.

Da mesma forma que a direita do Partido Conservador, a burocracia sindical, seu porta-voz Corbyn e seus apoiadores na pseudoesquerda não veem sentido em exigir a vacinação contra uma doença que eles aceitaram que será disseminada para sempre por toda a sociedade.

Uma falsa defesa dos direitos democráticos

Corbyn e a pseudoesquerda colocaram-se até mesmo à frente de Johnson, não apenas alertando para as possíveis consequências de um certificado de vacinação, mas se opondo a ele como um princípio.

A primeira crítica feita à obrigatoriedade da vacinação no vídeo de 18 de janeiro de Corbyn é reveladora. “Boris Johnson afirma ser um libertário ... ele parece agora estar enterrando a parte libertária”, afirma.

Essa é a crítica feita a Johnson pela direita do Partido Conservador, e se dirige não para a classe trabalhadora que está vivendo sob a tirania do vírus há dois anos, morrendo desproporcionalmente e sofrendo com os efeitos da doença e dificuldades financeiras, mas para os setores mais atrasados da pequena-burguesia que acham intoleráveis as restrições e imposições sobre seus estilos de vida necessários em uma pandemia para proteger a saúde e a vida dos mais vulneráveis da sociedade.

A defesa mais revoltante oferecida para essa posição anticientífica e antissocialista é a invocação condescendente das diferenças étnicas na obrigatoriedade das vacinas. O SWP escreveu em sua carta aberta que “Aqueles que são céticos em relação à vacina são provavelmente negros e outras etnias minoritárias e funcionários mais precarizados do NHS”. Esse é presumivelmente também o significado da alegação do TUC de que um certificado de vacinação “pode ser discriminatório”.

Os certificados de vacinação não se dirigem a ninguém com base em sua etnia. Essa política é determinada pela necessidade da sociedade de combater coletivamente uma doença virulenta e mortal. A vacinação obrigatória para trabalhadores de asilos e do NHS é ainda mais urgente por seu dever de cuidar dos pacientes mais vulneráveis à COVID. A verdadeira ameaça a negros, asiáticos e minorias étnicas, a maioria dos quais, como em toda etnia, tomou a vacina, não é a “discriminação” causada pelo certificado, mas seu sofrimento desproporcional nas mãos do vírus contra o qual ela protege.

Por uma série de razões, principalmente associadas à desigualdade social, negros, asiáticos e minorias étnicas têm uma probabilidade significativamente maior de serem mortos pelo vírus. Na segunda onda, cidadãos de Bangladesh tinham uma chance cinco vezes maior do que os homens brancos de morrer, paquistaneses 3,1 vezes, negros africanos 2,4 vezes, indianos 2,1 vezes e negros caribenhos 2 vezes. Os números são semelhantes, com diferenças ligeiramente menores, para as mulheres.

O SWP escreveu ainda que “o ceticismo não é irracional – pessoas negras nos EUA, no Reino Unido e no hemisfério sul têm sido historicamente submetidas a experimentos totalmente antiéticos para a ciência médica”.

Há uma enorme diferença entre entender a preocupação de alguém e aceitá-la como legítima, considerando ainda que isso possa fundamentar uma oposição ao certificado de vacinação responsável por salvar vidas.

A insinuação de que as vacinas atuais não são seguras não tem nenhum fundamento científico, muito menos qualquer insinuação de que seu uso pode ser comparado a uma experiência antiética. Mais de 10,1 bilhões de doses foram aplicadas em todo o mundo a pessoas de todas as origens étnicas. A porcentagem de vacinas que resultaram em graves efeitos colaterais é minúscula e, mais importante, significativamente menor do que o risco de os mesmos sintomas aparecerem se uma pessoa for diagnosticada com COVID.

A pandemia tirou em torno de 18 milhões de vidas no mundo inteiro, a maioria em países pobres com acesso imensamente restrito às vacinas. Dar credibilidade às políticas e ideologias que procuram restringir a aplicação de vacinas é politicamente vergonhoso.

Os certificados de vacinação podem criar as condições para superar preocupações infundadas. Uma vez estabelecido um prazo, após uma séria campanha de informação ao público, pode ser oferecida a todos a oportunidade de levantar quaisquer preocupações junto a um colega ou profissional médico de confiança e fazer com que elas sejam esclarecidas.

Existem preocupações genuínas entre os trabalhadores da saúde de que o Partido Conservador criou as condições nas quais até 120.000 trabalhadores podem ser demitidos nos serviços de saúde e assistência social (77.000 no NHS) já sofrendo o impacto combinado de décadas de cortes e da pandemia. Mas a única resposta legítima seria exigir um certificado devidamente implementado.

Além disso, deve-se considerar que mesmo as exigências de vacinação implementadas por governos capitalistas amplamente desacreditados tiveram um impacto positivo no incentivo à aceitação da vacinação, de modo que os alertas apocalípticos de demissões em massa não se concretizaram.

Pesquisas divulgadas pelo Financial Times revelaram que “os certificados de vacinação contra a COVID na França, Alemanha e Itália aumentaram a taxa de vacinação nesses países em 13, 6,2 e 9,7 pontos percentuais, respectivamente”. Na França, um país com altos níveis de hesitação vacinal mesmo antes da pandemia, apenas 3.000 dos 2,7 milhões de trabalhadores da saúde foram suspensos após a data limite de imunização obrigatória em setembro do ano passado, e muitos deles eram provisórios, pois tinham concordado em se vacinar.

Não é verdade que aqueles que se recusam a se vacinar possuem o “direito democrático” de cuidar de pessoas clinicamente vulneráveis. O Conselho Editorial do World Socialist Web Site emitiu uma declaração em julho passado, “Opor-se à campanha de direita contra a vacinação”, que explicava que “nenhum indivíduo tem o ‘direito’ de infectar outros e colocar em risco suas vidas”. A exigência de vacinação é uma “proteção contra morte e doenças graves, não violações da ‘liberdade pessoal’”.

Inúmeras leis, especialmente no campo da saúde e da segurança, restringem as ações de uma pessoa para protegê-la e proteger aqueles ao seu redor. As pessoas não devem dirigir um carro sem a luz de freio estar funcionando, por exemplo, ou enquanto estiverem bêbadas. Dentro do NHS, muitos trabalhadores já são obrigados a serem vacinados contra vírus como Hepatite B e Sarampo, Caxumba e Rubéola justamente pelas mesmas razões que estão sendo contra a COVID.

Política operária e socialista contra política pequeno-burguesa e libertária

A exigência de vacinação tem sido aceita há anos. A luta contra a vacina anti-COVID expressa especificamente outro conflito mais fundamental sobre o qual predominará a resposta de classe à pandemia.

Em resposta ao apoio do jornalista Glenn Greenwald à posição de Corbyn em dezembro passado, o presidente do Conselho Editorial Internacional do World Socialist Web Site, David North, escreveu:

“A oposição de Corbyn aos certificados de vacinação – uma medida de saúde pública necessária em uma pandemia – não é uma ‘postura desafiadora e corajosa de princípio’, como é definida por Greenwald. É, ao contrário, uma capitulação à direita fascista.

“Greenwald legitima sua trajetória de direita afirmando que a oposição à vacinação se baseia em ‘valores de esquerda de longa data relacionados à autonomia do corpo e ao antiautoritarismo...”. Isso é um absurdo. Ele está expressando o ‘antiautoritarismo’ do anarquismo pequeno-burguês.

“Todos os argumentos de Greenwald podem ser encontrados no tratado de Bakunin de 1871, ‘O que é Autoridade’, que se opõe especificamente à subordinação individual às leis baseadas na ciência – que inclui todas as leis e regulamentos que protegem a saúde pública.

“Friedrich Engels respondeu a Bakunin em seu ensaio de 1872, ‘Sobre a Autoridade’. Engels explicou que a complexidade da produção moderna ‘desloca a ação independente dos indivíduos’. A organização implica uma atividade coletiva e colaborativa e, portanto, o exercício da autoridade.

“‘Daí ser absurdo falar do princípio da autoridade como sendo absolutamente ruim, e do princípio da autonomia como sendo absolutamente benéfico. Autoridade e autonomia são coisas relativas cujas esferas variam com as diversas fases do desenvolvimento da sociedade.’

Friedrich Engels

“O princípio anarquista de Greenwald de ‘autonomia do corpo’ ignora não apenas a realidade da organização social moderna. Ele é alheio à realidade da luta de classes. Uma greve é uma forma de ação coletiva que envolve o exercício da autoridade e a ação disciplinada.

“O propósito tradicional de um piquete é impor o fechamento de uma fábrica. Isso envolve, considerando que a greve é realizada com a intenção de sair vitoriosa, o convencimento de trabalhadores a não entrar na fábrica, e pela força, se necessário.

“Assim, um piquete é um exercício extremo de autoridade, envolvendo uma violação direta e física sobre a ‘autonomia do corpo’ contra o que seria um fura greve. Quanto maior a ação das massas, maior é a restrição imposta à ‘autonomia do corpo’.

“Engels escreveu: ‘Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que existe...’. Uma parcela da população impõe a sua vontade a outra.

“Confrontada com um vírus que infecta e mata milhares de pessoas todos os dias, a saúde pública tem precedência sobre os interesses individuais – e especialmente quando os indivíduos estão minando a luta para acabar com a pandemia.

“Além disso, a luta pela vacinação combinada com medidas de saúde pública absolutamente essenciais, como o fechamento de escolas e lockdowns – medidas que Greenwald se opõe – envolve uma luta contra os interesses financeiros das empresas e o Estado capitalista.

“Dizendo absurdos reacionários anarquistas, o antiautoritarismo pequeno-burguês Greenwald é uma fraude que serve aos interesses da classe dominante”.

A tarefa dos socialistas na pandemia é ajudar a classe trabalhadora a impor uma política científica que proteja a vida, a saúde, a subsistência e as liberdades da população contra a política de assassinato social adotada e ferozmente defendida pela classe dominante. Fazer o contrário é ceder às posições antivacinação dos libertários de direita, da extrema direita e de inúmeros teóricos da conspiração.

Defender que a “autonomia do corpo” em relação à vacinação significa dizer que a necessidade de lockdowns, distanciamento social, uso de máscara e testagem e rastreamento de contatos também são uma violação inaceitável às liberdades individuais.

Corbyn repete isso em seu vídeo no YouTube em termos praticamente idênticos aos de seu irmão, Piers, uma das principais luzes dos protestos antivacina, traçando uma linha entre passaportes de vacinação, “identificação obrigatória de voto” e “um enorme banco de dados como todas as nossas informações”.

Em poucos dias após sua carta aberta contra o certificado de vacinação do NHS, o SWP foi obrigado a reconhecer que as manifestações antivacina no fim de semana anterior, nas quais participaram um punhado de trabalhadores da saúde, “estavam tendendo à direita ... Longe de ter sido um elemento marginal, aqueles que promovem ‘mais abertamente’ ideias conspiratórias, muitas vezes enraizadas no antissemitismo, estavam no centro” dos protestos.

O grupo NHS 100k presente “duvidou da eficácia da vacinação e promoveu uma ‘pesquisa’ falsa antimáscara”, encorajando “seus apoiadores a aderir ao direitista Sindicato dos Trabalhadores Ingleses, que é dirigido pelo líder do partido de extrema direita Democratas Ingleses”.

Em sua resposta a esse desenvolvimento nefasto que encorajou, o SWP dobrou os chamados para que os sindicatos liderassem os protestos contra o certificado de vacinação.

O Partido Socialista pela Igualdade apoia todas as medidas necessárias para controlar, suprimir e eliminar o SARS-CoV-2, incluindo a vacinação universal, mas como parte de uma estratégia global a ser implementada pela classe trabalhadora na luta contra todos os governos capitalistas e seus aliados políticos, incluindo os autoproclamados apologistas de “esquerda” da imunidade de rebanho.

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