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A política de “imunidade de rebanho” no Brasil: pobreza e morte em massa para os trabalhadores, bonança para os super-ricos

Distribuição de comida para a população em situação de rua em Curitiba, no Paraná (Crédito: Valmir Fernandes - Coletivo Marmitas da Terra)

Quase dois anos depois do início da pandemia de COVID-19, seus efeitos sociais, econômicos e sanitários para a classe trabalhadora e os pobres brasileiros estão ficando cada vez mais claros. Inúmeros estudos e relatórios sociais e econômicos publicados nos últimos meses têm revelado um efeito desproporcional da maior crise sanitária em um século sobre a população trabalhadora, que teve uma mortalidade maior, empobreceu e passou a sofrer os efeitos da fome à medida que aumentou o número de bilionários no Brasil.

O Brasil possui o segundo maior número de mortes no mundo por causa da pandemia, com 652.000 vítimas da COVID-19, e o terceiro maior número de casos, com mais de 29 milhões. Há um consenso entre os especialistas que ambos os números são subestimados, além de ser impossível estimar os milhões que têm sofrido com os efeitos da COVID longa.

Tal situação é o produto direto de uma política deliberada da elite dominante brasileira para manter as escolas e os locais de trabalho abertos em meio a uma pandemia fora de controle, não só para não prejudicar os lucros corporativos, como também para aumentá-los. Apesar de a política de imunidade de rebanho ter no presidente fascistoide brasileiro Jair Bolsonaro o seu mais aberto expoente, ela foi abraçada por todos os partidos que controlam cidades e estados, incluindo a suposta oposição representada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que foram abandonando as mais básicas medidas de mitigação para declarar o fim da pandemia por decreto.

Na sexta-feira passada, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os últimos dados econômicos do ano passado. Apesar do PIB brasileiro ter crescido 4,6% em 2021 depois de uma queda de 3,9% no ano anterior, a renda média real dos trabalhadores brasileiros diminuiu 7% em relação a 2020, passando de 2.782 para 2.587 reais. Foi o menor nível desde 2012, quando se iniciou a série histórica.

Porém, a redução de renda não foi a mesma para toda a população brasileira. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de setembro de 2021, “Desigualdade e Impactos Trabalhistas na Pandemia”, mostrou que, para os 50% mais pobres da população brasileira, a redução de renda foi de 21,5% em relação a 2019, um valor mais do que o dobro da média de toda a população na época, de 9,4%.

Dados comparativos entre a renda dos mais pobres e dos mais ricos divulgados em dezembro do ano passado pelo World Inequality Lab mostraram uma situação ainda mais perturbadora. Segundo ele, os 50% mais pobres no Brasil receberam apenas 10% da renda nacional e possuíam apenas 0,4% da riqueza do país em 2021. Já os 10% mais ricos ganharam 59% da renda nacional, quase 30 vezes mais do que os 10% mais pobres.

Segundo o estudo da FGV, mais da metade da diminuição da renda dos mais pobres foi devido ao aumento do desemprego. O ano de 2021 terminou com uma média de desemprego de 13,2%, atingindo 12 milhões de brasileiros. As elites dominantes celebraram esse dado considerando uma diminuição da taxa de desemprego de quase 15% no auge da crise sanitária, ignorando que tal “recuperação” se deu em função do aumento do trabalho informal e da diminuição dos salários daqueles contratados. Foi o segundo maior nível de desemprego registrado desde 2012.

Se o desemprego no Brasil é o maior entre os países do G20, a taxa de inflação é a terceira maior, atrás apenas da Turquia e da Argentina. A inflação de 10,06% em 2021, a maior desde 2015, foi impulsionada pelo enorme aumento no preço dos combustíveis, com a gasolina tendo aumentado 47,5% no ano passado. O preço da energia elétrica aumentou 21%, do gás de cozinha 37% e da alimentação e bebidas 7,9%. Esse aumento de preços teve um impacto direto no consumo das famílias, que, junto com o desemprego, fez o seu nível de consumo voltar ao patamar de 2018.

Essa combinação miserável de desemprego e inflação tem acelerado o aumento da pobreza e da fome, que vem crescendo no Brasil desde 2015, quando a crise econômica se agravou. Em 2019, 11% da população brasileira, ou 23 milhões de pessoas, vivia abaixo da linha de pobreza. Porém, supostamente em meio a uma fase de “recuperação” econômica, em julho de 2021, esse número aumentou para 13% da população brasileira, atingindo 27,7 milhões de pessoas, o maior número em 9 anos.

É preciso destacar que o auxílio emergencial de apenas 60% do salário-mínimo pago pelo governo federal em 2020 havia reduzido brevemente a taxa de pobreza para 4,3%. Sua extinção fez a pobreza explodir para 16% da população, atingindo 34 milhões de pessoas. Ao acabar com o auxílio emergencial, a classe dominante conseguiu chantagear os trabalhadores para que voltassem ao trabalho com salários mais baixos e completamente expostos a um novo surto catastrófico da COVID-19 no segundo trimestre de 2021.

No primeiro ano da pandemia, em 2020, um estudo da Universidade Livre de Berlim em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais mostrou que 59,3% da população, ou 125,6 milhões de brasileiros, sofreram de insegurança alimentar, a maior proporção desde 2004. Ele também mostrou que 63% da população brasileira mudou os hábitos alimentares em função do aumento da pobreza.

Esse cenário desesperador para a classe trabalhadora e os pobres brasileiros contrasta com a situação dos super-ricos. Ao listar os novos 40 bilionários brasileiros no ano passado, a revista Forbes escreveu cinicamente que o ano de 2021 foi “tão desafiador quanto o primeiro para o ... ambiente de negócios”, acrescentando: “Os incentivos financeiros [isto é, os resgates trilionários] ao redor do mundo para fazer frente à crise aqueceram o mercado de capitais”, o que “favoreceu diretamente o crescimento do clube dos super-ricos.”

No início da pandemia, o Banco Central do Brasil, acompanhando a farra especulativa nos EUA e internacionalmente, injetou 1,2 trilhão de reais no mercado financeiro, quase 17% do PIB brasileiro. Isso representou um valor mais do que 4 vezes maior do que o oferecido aos 67 milhões de brasileiros, ou 31% da população, que recebeu o auxílio emergencial do governo federal.

Segundo o relatório da Oxfam “A desigualdade mata”, publicado em janeiro deste ano, isso fez com que os bilionários brasileiros aumentassem sua riqueza em 30% durante a pandemia, enquanto 90% da população empobreceu. O estudo do World Inequality Lab também mostrou que o 1% mais rico do Brasil possuía quase a metade (48,9%) da riqueza nacional em 2021, um aumento de 0,5 ponto percentual desde 2019. De fato, o índice de Gini durante a pandemia disparou. Ele passou de 0,6276 em 2019 para 0,6669 no primeiro semestre de 2020, caindo para 0,6400 em meio à suposta “recuperação” econômica em meados de 2021. O Brasil é o sexto país mais desigual do mundo.

A pandemia não só aumentou a desigualdade social, como os efeitos da desigualdade social também tiveram um impacto direto na pandemia no Brasil, o país com o segundo maior número de mortes no mundo. Inúmeros estudos têm mostrado a relação entre pobreza e mortalidade por COVID-19, que no início da pandemia chegou a ser o dobro entre os pobres brasileiros do que a média nacional. Em São Paulo, a maior cidade da América Latina junto com a Cidade do México e centro financeiro do Brasil, um estudo recente mostrou que a letalidade em UTI em hospitais públicos é três vezes maior do que em hospitais de “alto custo”, que são frequentados pelos super-ricos e a elite dominante brasileira.

Esses números desproporcionais de mortes entre a população trabalhadora, praticamente impossibilitada de realizar isolamento social devido a precárias condições de moradia e sem uma ajuda financeira adequada, estão ligados aos esforços da elite dominante brasileira em manter a maior quantidade possível de locais de trabalho abertos para assegurar os seus lucros. Isso foi confirmado pelo estudo “A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da COVID-19”, entregue à Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado brasileiro que investigou a resposta do governo federal à pandemia. Ele levantou mais de 3,5 mil normas do governo federal até 30 abril de 2021 para mostrar que houve “o empenho e a eficiência em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível, o que segundo o Tribunal de Contas da União configura a ‘opção política do Centro de Governo de priorizar a proteção econômica’” – uma referência aos lucros corporativos, não às condições de vida dos trabalhadores.

Entre as normas para “priorizar a proteção econômica” estão aquelas que “ampliaram o rol de atividades consideradas essenciais durante uma pandemia”, como a construção civil e diversos setores industriais e de serviços. Essas mesmas atividades econômicas foram as que impulsionaram o crescimento do PIB brasileiro em 2021, induzido ainda pelos baixos salários e empregos informais.

O estudo concluiu que o governo federal defendeu a “tese da imunidade de rebanho por contágio como forma de resposta à COVID-19, disseminando a crença de que a ‘imunidade natural’ decorrente da infecção pelo vírus protegeria os indivíduos e levaria ao controle da pandemia. ... não é demais conhecer a opinião de William Haseltine, Presidente da ACCESS Health International, para quem a ‘imunidade de rebanho é outro nome para assassinato em massa. É exatamente disto que se trata.’”

Para expor toda a crueldade maligna da elite dominante mundial durante a pandemia, no final de novembro de 2021, o World Socialist Web Site lançou a Investigação Mundial dos Trabalhadores sobre a Pandemia de COVID-19. O seu objetivo é investigar e “expor as forças e interesses políticos e econômicos que impulsionaram as políticas que permitiram a transmissão descontrolada do vírus” e “desmascarar o mito de que a pandemia era um desastre imprevisível e incontrolável”. Nós fazemos um chamado para que todos aqueles que queiram se envolver nessa iniciativa entrem em contato conosco.

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