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Perspectivas

O significado do 6 de janeiro e da conspiração para estabelecer uma ditadura nos Estados Unidos

Publicado originalmente em 11 de junho de 2022

Com a abertura das audiências públicas no congresso americano para investigar o 6 de janeiro, qualquer discussão sobre o evento deve começar com um fato reconhecido e inegável: O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, procurou organizar um golpe de Estado, derrubar a Constituição e estabelecer uma ditadura personalista, e ele chegou muito perto de conseguir isso.

Na quinta-feira, o deputado Bennie Thompson, representante do Partido Democrata do comitê para investigação do 6 de janeiro, foi direto em sua caracterização: “O 6 de janeiro foi o ponto máximo de uma tentativa de golpe”. Thompson acrescentou que o violento ataque ao Capitólio não foi um acidente. “Ele representou a última e mais desesperada chance de Trump interromper a transferência de poder”.

Esse fato é de enorme significado. A história dos Estados Unidos inclui agora a tentativa de derrubar o governo por um presidente em exercício. Um evento desse tipo não ocorreu em nenhum outro país capitalista avançado na era moderna.

As audiências apenas começaram, mas mesmo a apresentação dos fatos no primeiro dia levanta várias perguntas sem resposta: Por que a invasão do Capitólio não encontrou praticamente nenhuma resistência? Por que, ao longo de três horas, não foram tomadas medidas para impedir a invasão? Dado o fato de Trump ter atacado a legitimidade das eleições desde a sua realização, por que, ao contrário de preparativos terem sido feitos, é evidente que todos os meios de defesa do Capitólio foram efetivamente tornados indisponíveis? Além disso, o que o Partido Democrata estava fazendo durante esse período? Por que Biden ficou em silêncio? Por que demorou 18 meses para que as audiências fossem realizadas?

Duas questões críticas estão envolvidas na resposta a essas perguntas.

Primeiro, um evento de tal caráter só pode ser entendido em termos sociais, políticos e de classe. Em um sentido fundamental, a tentativa de derrubar o governo significa que uma parte significativa da classe dominante americana estava preparada para aceitar o estabelecimento de uma ditadura presidencial. Isso é substanciado pelo fato de que as ações de Trump tiveram o apoio da maioria do Partido Republicano, junto ao apoio significativo dentro do Estado capitalista em todos os níveis.

Nos meses anteriores a 6 de janeiro, os principais republicanos, incluindo o líder do Partido Republicano do senado, Mitch McConnell, legitimaram as reivindicações de Trump de uma eleição roubada. A invasão do Capitólio foi parte de um plano que incluía objeções das autoridades republicanas aos eleitores indicados pelos estados que Biden venceu. Mesmo após a tentativa de golpe, nas primeiras horas da manhã de 7 de janeiro, dois terços dos republicanos votaram contra a certificação dos resultados.

Além disso, Trump e seus co-conspiradores possuíam um apoio significativo dentro do aparato militar e policial. Em março de 2021, o comandante da guarda nacional de Washington, William Walker, disse em seu testemunho que transcorreu um período de três horas e 19 minutos entre o seu pedido inicial ao comando militar para autorizar o destacamento das tropas da guarda nacional e a sua aprovação final.

Em segundo lugar, a resposta impotente do Partido Democrata ao golpe demonstrou a ausência de qualquer compromisso significativo com a democracia burguesa dentro da classe dominante. Os democratas estavam claramente cientes dos planos de Trump para permanecer no cargo. Em junho de 2020, Biden disse que a sua “única grande preocupação” era que “esse presidente vai tentar roubar a eleição”.

No entanto, os democratas não tomaram nenhuma medida para combater o golpe ou para alertar o público sobre o que estava acontecendo. Em 6 de janeiro, o presidente eleito Biden esperou várias horas para dizer qualquer coisa. Quando finalmente deu uma declaração, Biden fez o extraordinário apelo ao próprio Trump para “se prontificar” e aparecer em televisão nacional para cancelar a insurreição que ele mesmo havia organizado.

Os democratas estavam, e estão, com medo de fazer qualquer coisa que desperte a oposição mais ampla dentro da população. Ao longo da administração Trump, suas discordâncias com Trump foram centradas principalmente em questões de política externa e, em particular, na demanda por medidas mais agressivas contra a Rússia.

Mesmo nas audiências sobre o 6 de janeiro, todas as ações dos democratas são à favor da direita, de maneira tipicamente submissa: a adoção como principal porta-voz do comitê da republicana, Liz Cheney, filha do ex-presidente Dick Cheney; a glorificação de Mike Pence, William Barr, e outros republicanos; etc.

Enquanto isso, Biden permaneceu em silêncio nas audiências e nada disse sobre o golpe de 6 de janeiro desde seu discurso no seu aniversário há seis meses. Segundo a Casa Branca, isso é porque Biden não quer “politizar” a investigação de uma tentativa de insurreição fascista contra a sua própria presidência!

Com base no que sabemos hoje, se o golpe tivesse sido bem sucedido, não há razão para acreditar que o Partido Democrata teria feito oposição a ele. Os democratas teriam se adaptado aos novos fatos, fazendo no máximo apelos pela intervenção dos militares ou da suprema corte, que inclui como um de seus juízes Clarence Thomas, marido de uma das principais participantes na conspiração para o golpe.

Há 50 anos, o envolvimento da administração Nixon na invasão da sede do Partido Democrata nos escritórios Watergate foi considerado suficientemente sério para exigir audiências e processos judiciais extensos, que culminaram com a saída de Nixon.

Os eventos que ocorreram em 6 de janeiro de 2021 são de um caráter qualitativamente diferente ‒ o esforço para derrubar a Constituição e estabelecer uma ditadura. Entretanto, nenhum daqueles centralmente envolvidos foi preso. O Partido Democrata não disse sequer quais são os objetivos das audiências do congresso nem sugeriu que elas se destinam a construir um caso para acusar e processar Trump. Ao contrário, as audiências foram precedidas pela decisão do departamento de Justiça de não indiciar os principais assessores de Trump, Mark Meadows e Dan Scavino.

A situação é extremamente perigosa. O golpe de 6 de janeiro surgiu da prolongada e terminal crise da democracia americana, enraizada, acima de tudo, no crescimento extremo da desigualdade social. Todas as condições que provocaram o golpe apenas se agravaram. Há sinais crescentes de crise e colapso econômicos, conforme a inflação cresce fora de controle. Embora ignorada por todo o establishment político e pela mídia, a pandemia continua a se espalhar.

A classe dominante, ao travar a guerra mundial no exterior e enfrentar a crescente oposição interna no país, volta-se para formas ditatoriais de governo. O fato de que a democracia americana está à beira do colapso é hoje amplamente reconhecido. Na imprensa internacional, há uma discussão aberta sobre a perspectiva de uma guerra civil e a desintegração do país.

O Partido Republicano, falando pelos setores mais impiedosos da classe dominante, não recua e é agressivo. Até hoje, o Partido Republicano apoia esmagadoramente Trump e se prepara para assumir a maioria do congresso nas eleições de meio de mandato.

O Partido Democrata, longe de unir a oposição, defende a “união” e a tolerância “bipartidária”. Ele procura, como sempre, esconder, desmoralizar e fazer tudo o que pode para desviar a revolta social contra o sistema existente ao longo de linhas reacionárias, acima de tudo a guerra.

As organizações sindicais, alinhadas politicamente ao Partido Democrata, fazem tudo o que podem para destruir e reprimir a oposição da classe trabalhadora. As organizações da pseudoesquerda da classe média alta trabalham para alienar e confundir os trabalhadores com a promoção de políticas raciais e de gênero. Outra seção da pseudoesquerda tem sido completamente exposta por seus esforços para minimizar a seriedade do golpe, tratá-lo como insignificante e até mesmo se solidarizar com Trump.

O que surge de uma análise dos acontecimentos do 6 de janeiro e da atual conspiração é que a oposição à ditadura e a defesa dos direitos democráticos mais básicos deve ser desenvolvida como um movimento da classe trabalhadora. Isso não é uma questão abstrata. Após um ano e meio da tentativa de golpe de Trump, há um movimento crescente dos trabalhadores nos EUA e internacionalmente, enormemente acelerado pelas conseqüências econômicas e sociais da pandemia e da guerra.

Entretanto, esse processo objetivo deve ser desenvolvido em um movimento político consciente contra o capitalismo e todo o aparato político da classe dominante. Isso significa, acima de tudo, a construção do Partido Socialista pela Igualdade como a liderança revolucionária da classe trabalhadora.

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