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Perspectivas

As implicações desastrosas do abandono da COVID Zero na China

Publicado originalmente em 18 de novembro de 2022

Na semana passada, o governo do Partido Comunista Chinês (PCCh) iniciou um perigoso afastamento da estratégia de eliminação de COVID Zero, que tem estado em vigor em toda a China desde o início da pandemia.

A evidência mais clara para essa mudança é a publicação na última sexta-feira de 20 medidas pela Comissão Nacional de Saúde (CNS) que restringem todos os aspectos da política de COVID Zero, em um momento em que os novos casos diários aumentaram mais de dez vezes desde o final de outubro. De acordo com o Our World In Data, a média de sete dias de casos novos diários na China agora é de 15.897 e está a caminho de atingir o recorde histórico na próxima semana.

Novos casos diários de COVID-19 na China [Photo by Our World In Data / CC BY 4.0]

As 20 medidas incluem uma redução dos protocolos de testagem em massa, restrições na capacidade de regiões realizarem lockdowns, uma redução dos tempos de quarentena para contatos próximos de pessoas infectadas pela COVID-19, um afrouxamento das restrições de viagem para e dentro da China, o fim do rastreamento de contatos para contatos secundários, e outras medidas.

Apesar de um aumento de casos em Guangzhou que já dura semanas, as autoridades não implementaram um lockdown em toda a cidade, e ondas crescentes em outras grandes cidades em todo o país não provocaram lockdowns pela primeira vez desde que o lockdown inicial de Wuhan começou em 23 de janeiro de 2020.

Também foram incluídas nas 20 medidas as promessas de acelerar os programas de vacinação, construir infraestrutura de saúde e estocagem de medicamentos, claramente em antecipação a um surto nacional de infecções e hospitalizações por COVID-19. Na quinta-feira, o chefe da CNS Guo Yanhong anunciou que o país construirá mais hospitais especializados no tratamento de pacientes moderados e graves com COVID-19, enquanto garantiu que as unidades de cuidados intensivos cubram 10% de todos os leitos hospitalares.

As 20 medidas foram anunciadas um dia depois que o presidente chinês Xi Jinping realizou uma reunião sobre a pandemia com seu novo Comitê Permanente do Politburo, a primeira desde o fim do 20º Congresso do PCCh, em 23 de outubro.

Naquele Congresso, Xi apresentou a falácia do “socialismo com características chinesas”, distorcendo a realidade de que a restauração do capitalismo produziu um vasto crescimento na desigualdade social e nas tensões de classe dentro da China. No início de 2020, temendo uma revolução social em meio a uma crescente crise de saúde pública, o PCCh implementou pela primeira vez a COVID Zero a fim de evitar o colapso do sistema de saúde do país e manter a estabilidade nacional.

Apesar do imenso significado da política de COVID Zero da China, que por mais de dois anos salvou milhões de vidas e provou que a eliminação é possível, a base nacionalista dessa política sempre a tornou inviável a longo prazo. Assim como o “socialismo com características chinesas” é uma ilusão nacionalista, manter a COVID Zero em um único país é impossível. Ao abandonar essa política, a sociedade chinesa agora enfrenta diretamente a “COVID com características imperialistas”.

Por mais de dois anos, o imperialismo americano tem pressionado incessantemente a China para abandonar sua política de COVID Zero, como parte de seus esforços mais amplos para cercar e subjugar militarmente o país. Inúmeras colunas têm sido publicadas denunciando as políticas de saúde pública da China por seu impacto nos lucros corporativos, exigindo que elas sejam eliminadas, não importando o custo em vidas humanas.

Durante o ano passado, a China foi repetidamente bombardeada pela variante Ômicron altamente infecciosa e mais resistente às vacinas, que surgiu no final de 2021 devido à propagação sem obstáculos do vírus fora do país. Entre março e junho, a subvariante BA.2 da Ômicron causou o maior surto de infecções da China até hoje, centrado em Xangai. Após essa onda ter sido suprimida com sucesso, ela própria um triunfo da saúde pública, ondas menores afetaram diferentes partes do país quase continuamente, exercendo grande tensão na capacidade de testagem em muitas cidades.

Os esforços para manter a COVID Zero se tornaram cada vez mais custosos, com o Banco Mundial prevendo no final de setembro que o crescimento do PIB da China diminuirá em mais de 5% este ano.

Parece que um ponto de inflexão foi alcançado quando a Apple ameaçou tirar a produção da China após um grande surto de COVID-19 na famosa fábrica da Foxconn em Zhengzhou, a maior fábrica de iPhone do mundo, interrompendo drasticamente a produção antes do pico da temporada de compras no fim do ano. Ao abandonar a COVID Zero, o PCCh procura claramente reintegrar-se à economia mundial e restaurar totalmente a produção capitalista, simbolizada pela participação sem máscara de Xi na cúpula do G20 esta semana.

As implicações completas do abandono da COVID Zero irão aparecer nas próximas semanas e meses. É claro que o PCCh ainda não adotou a política de “imunidade de rebanho” de infecção em massa que foi universalmente implementada no Ocidente, e sua política atual pode ser descrita como a estratégia mitigadora mais rigorosa possível.

No entanto, as leis objetivas da transmissão viral são implacáveis e a situação pode sair rapidamente do controle. Qualquer afastamento da estratégia de eliminação de COVID Zero traz consigo o potencial para uma catástrofe monumental. A esse respeito, as experiências na Nova Zelândia e em Hong Kong durante o ano passado são muito ilustrativas dos perigos futuros.

Em Hong Kong, que é densamente povoada e comparável às condições da maioria das grandes cidades chinesas, o abandono da COVID Zero em fevereiro passado causou rapidamente um surto de infecções que levou ao maior número de mortes diárias per capita registrado em qualquer parte do mundo desde o início da pandemia. Devido às taxas relativamente baixas de vacinação entre os idosos, num período de três meses Hong Kong passou de apenas 213 mortes para 9.346, um número acumulado de mortes per capita aproximadamente a metade do dos Estados Unidos, onde mais de 1,1 milhão de americanos morreram pela COVID-19.

Mortes diárias por COVID-19 por milhão de pessoas [Photo by Our World In Data / CC BY 4.0]

Na Nova Zelândia, repetidas ondas de infecção inundaram hospitais e deram ao país uma das mais altas taxas de mortalidade per capita do mundo durante grande parte deste ano. Desde novembro de 2021, o número de mortes no país subiu de apenas 31 para 2.154.

As condições na China são mais próximas de Hong Kong do que da Nova Zelândia. Em Xangai, apenas 71% das pessoas com 60 anos ou mais receberam duas doses de vacina e apenas 46% receberam a dose de reforço, e existem números comparáveis em muitas outras cidades. A maioria da população chinesa foi vacinada com a vacina da CoronaVac, que se mostrou menos eficaz do que as vacinas de RNA na prevenção de hospitalização e morte.

Se a situação na China continental se tornar incontrolável, será uma tragédia histórica mundial. Na China vivem 1,4 bilhão de pessoas, um sexto da população mundial. Um estudo publicado em maio revelou que se a Ômicron se propagasse livremente na China, em apenas seis meses haveria provavelmente 112 milhões de casos sintomáticos, 5,1 milhões de internações hospitalares, 2,7 milhões de internações em UTI e 1,6 milhão de mortes. Os resultados no mundo real poderiam ser muito piores do que os previstos pelo estudo, particularmente dada a evolução de variantes ainda mais infecciosas e resistentes às vacinas durante os últimos seis meses.

Além da crise aguda durante o surto inicial, a sociedade chinesa também seria confrontada com as consequências a longo prazo da doença crônica após a infecção. Somente nos Estados Unidos, os números oficiais indicam que pelo menos 20 milhões de americanos estão agora sofrendo de sequelas de longo prazo conhecidas como COVID longa, que podem causar uma ampla gama de sintomas que afetam quase todos os órgãos do corpo. Até 4 milhões de americanos estão tão profundamente incapacitados pela COVID longa a ponto de terem abandonado completamente o trabalho.

Extrapolado para a população chinesa, se a estratégia de “imunidade de rebanho” adotada no Ocidente for finalmente implementada, mais de 85 milhões de chineses poderão acabar sofrendo de COVID longa, incluindo mais de 15 milhões serão completamente incapacitados pelo vírus.

Ao abandonar a COVID Zero, a China enfrentará pressões crescentes para abraçar plenamente a política distópica de “COVID para sempre”, pioneira nos Estados Unidos e adotada por quase todos os governos mundiais, na qual ondas intermináveis irão reinfectar um número cada vez maior da população no futuro próximo. Um estudo recente descobriu que cada reinfecção por COVID-19 aumento o risco de morte, hospitalização e COVID longa.

Quaisquer que sejam as considerações econômicas e políticas pragmáticas que estejam levando o PCCh a abandonar a COVID Zero, a crise que ele enfrenta não será de forma alguma resolvida e poderá se tornar muito pior.

Dependendo da rapidez com que o vírus se espalhar e começar a sobrecarregar os sistemas hospitalares, é possível que o PCCh reverta o curso e tente restaurar a política de COVID Zero. Entretanto, na ausência de uma estratégia coordenada globalmente, isso se tornará cada vez mais difícil.

O abandono da COVID Zero é uma questão política que atinge toda a população mundial. Permitir que o vírus se espalhe nessa população que não teve o contato com ele como o resto do mundo poderia proporcionar ao vírus mais de 1 bilhão de novos hospedeiros nos quais ele poderia sofrer ainda mais mutações e gerar novas variantes. Essa mudança política reacionária na China coloca, portanto, a necessidade de os trabalhadores internacionalmente renovarem sua luta contra as políticas de seus próprios governos e de se unificarem através das fronteiras nacionais.

Como o World Socialist Web Site tem enfatizado continuamente, a única maneira de acabar com a pandemia é a classe trabalhadora internacional tomar as rédeas da situação e lutar pela estratégia de eliminação global de COVID Zero. Isso implica a implementação simultânea de todas as medidas de saúde pública disponíveis, bem como a modernização da infraestrutura para garantir que cada espaço público esteja livre de bactérias e vírus nocivos. A luta por esse programa está indissoluvelmente ligada à luta pelo socialismo mundial, baseada na priorização das necessidades humanas sobre os lucros privados.

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