Português

Milhões de estudantes brasileiros se recusam a fazer exame em meio à crescente oposição à campanha pelo retorno às aulas

Publicado originalmente em 25 de janeiro de 2021

Enquanto a segunda onda do coronavírus está registrando números recordes de casos e mortes e sobrecarregando o sistema de saúde no Brasil, todas as seções da classe dominante estão levando impondo a política da “imunidade de rebanho”, com vários estados anunciando o retorno às aulas presenciais nas próximas semanas.

No dia 21, o país registrou 1.382 mortes em 24h, o maior número de mortos desde 4 de agosto durante o auge da primeira onda da pandemia. A média móvel ultrapassou mil mortes novamente, em meio à desastrosa campanha de vacinação nacional, com secretário de Saúde do estado de São Paulo, Jean Gorinchteyn, tendo declarado que a vacina levará seis meses para ter algum impacto sobre o número de casos.

Nessas condições, o exame nacional de admissão nas universidades públicas, o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), foi realizado no dia 17 em todo o país após ter sido adiado em dois meses. No estado do Amazonas, onde o sistema de saúde entrou em colapso com pacientes morrendo pela falta de tanques de oxigênio, o ENEM foi meramente adiado por mais algumas semanas.

Estudantes na fila para entrar nas salas de aula durante o ENEM no estado do Pará (Ricardo Amanajás/Ag.Pará/Fotos Públicas)

Os estudantes responderam à realização do exame com uma taxa de abstenção de 51,5%, o que corresponde à mais de 2,8 milhões de candidatos. Entre 2009 e 2019, a abstenção no primeiro dia de prova foi de 28% em média. A ausência sem precedentes em um dos exames nacionais anuais mais importantes do país é na prática uma declaração de oposição à política de imunidade de rebanho e à reabertura das escolas e universidades em todo o país.

A realização do ENEM forçou milhões de jovens a escolher entre arriscar o contágio pelo coronavírus ou o que significa em muitos casos o abandono do ensino superior. Em uma reportagem da BBC, uma jovem estudante declarou claramente: “Não poderei fazer uma faculdade se estiver morta”. Outra estudante na mesma reportagem disse: “Eu me preparei para essa prova o ano inteiro, mas pensei na minha família e na minha saúde”.

Não há dúvida de que muitos estão sendo forçados a abandonar a chance de obter um diploma devido às pressões financeiras. Entre 2017 e 2019, o número de candidatos do ENEM caiu em 1,3 milhão, indicando a necessidade crescente por muitos de entrar rapidamente no mercado de trabalho. Em maio do ano passado, o número de inscritos caiu ao número mais baixo desde 2010.

No ano passado, também houveram esforços para a introdução de plataformas de ensino a distância (EAD) nos currículos escolares, com os governos estaduais fechando acordos com operadoras de celular, o Google e a Amazon para implementar plataformas educacionais de massas. Esses acordos foram feitos sem qualquer esforço simultâneo para ensinar os estudantes a utilizar essas plataformas, ou fornecer tablets, computadores e celulares. Os governos estaduais se limitaram a fornecer chips de celular para os professores e os estudantes, que em muitos casos compartilham um único celular com a família inteira.

A segunda onda do coronavírus que começou no final de novembro, que foi mais criminosamente expressa nas cenas terríveis vistas em Manaus durantes as semanas anteriores ao ENEM, e que continuam até hoje, certamente tiveram um impacto sobre os estudantes.

Fotos nas redes sociais mostraram centenas de estudantes aglomerados nos portões de entrada das escolas e universidades. Um dos vídeos circulados no Twitter mostram uma fila de alunos esperando para entrar nas salas de aula antes do início do exame. Cenas similares foram vistas após a reabertura das escolas de Manaus em agosto, resultando na disseminação do coronavírus em dezenas de escolas.

Um dia antes do exame, a Universidade Federal de Santa Catarina disse que o INEP, o órgão do governo responsável pelo ENEM, estava mantendo nos seus planos salas com ocupação de 80%. Houveram relatos em quatro estados de candidatos sendo informados alguns minutos antes do início da prova que não poderiam entrar nas salas por conta do limite de 50% da capacidade.

Uma estudante declarou sua indignação no Twitter: “metade das pessoas entraram e metade ficou de fora, porque o INEP avisou ontem às 23h que era pra reduzir 50% do total de participantes em sala. Sendo agora talvez realizado em fevereiro, porém temos outros vestibulares! E a ansiedade? O medo? A insegurança? Injustiça!”.

As denúncias dos estudantes expuseram a declaração mentirosa do presidente do INEP: “Tivemos uma aplicação tranquila do ponto de vista da segurança sanitária”. Expressando a indiferença da classe dominante ao surto de casos e mortes que certamente ocorrerá após o exame e se houver reabertura das escolas, o Ministro da Educação, Milton Ribeiro, declarou que realizar o ENEM no meio de uma pandemia deve ser visto como uma vitória, “para não atrasar mais a vida de milhões de estudantes”.

A realização do exame em meio à segunda onda do coronavírus faz parte da campanha da elite dominante pelo retorno às aulas presenciais. Ao longo do ano passado, os governadores dos estados, incluindo aqueles governados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), responderam à oposição dos professores, alunos e pais à reabertura das escolas com declarações hipócritas sobre o “prejuízo educacional” e em defesa da “saúde mental das crianças” durante a pandemia.

No entanto, nos últimos anos, esses mesmos governos implementaram consecutivos cortes na educação paralelamente à campanha de austeridade do presidente Jair Bolsonaro, incluindo diversas “reformas da previdência” estaduais, através de violenta repressão.

Essa campanha foi intensificada a partir de dezembro, com vários estados declarando a educação básica um serviço essencial, e que as escolas serão abertas mesmo em regiões em “fase vermelha”. O Secretário da Educação no estado de São Paulo, Rossieli Soares, declarou no dia 18 que um terço das aulas seriam obrigatoriamente presenciais em 2021, recuando logo depois diante da revolta generalizada por conta do surto em Manaus.

O governo tomou a decisão de realizar o exame sob oposição dos estudantes, que haviam exigido o adiamento da prova nas redes sociais nas semanas anteriores.

Enquanto isso, uma pesquisa nacional do Instituto Datafolha realizada entre 8 e 10 de dezembro mostrou que duas em cada três pessoas defendem o fechamento das escolas como meio de conter o avanço da pandemia. A maioria também defendem o fechamento de serviços não-essenciais como bares, lojas e academias. Segundo o Instituto Península, 65% dos professores do país defendem a permanência das escolas fechadas.

Os sindicatos de professores e uniões estudantis estão tentando desviar e suprimir a enorme oposição com apelos às instituições capitalistas. No dia 20, a APEOESP, o sindicato dos professores estaduais de São Paulo, emitiu uma declaração de oposição ao “planejamento presencial nas escolas”, tendo enviado um “Mandato de Segurança Coletivo” para o Tribunal de Justiça do estado.

Apesar de a APEOESP declarar ser contra a reabertura das escolas, ao longo do ano passado, as suas ações consistiram em fazer reuniões na assembleia legislativa estadual com o secretário Soares e iniciar processos judiciais contra o governo estadual. A “carreata pela vida” organizada no meio do ano passado foi organizada para terminar na casa do governador direitista do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), João Doria, e exigir o fim da reabertura, desviando uma greve dos professores. No final do ano passado, em meio a chamados por uma greve geral e a paralisações dos professores da Rede Metodista em vários estados, os sindicatos fizeram de tudo para atrasar e impedir uma luta dos professores.

Hoje, os sindicatos querem que os professores confiem que o governo organizará uma campanha bem-sucedida de vacinação dos trabalhadores da saúde, idosos e professores. A APEOESP está chamando pela priorização dos professores, mesmo após o secretário Soares ter afirmado no dia 13 que “esperar vacina não é justificativa epidemiológica. Se não teriam que fechar todos os demais setores essenciais”. Essa campanha enganosa está sendo repetida pelos sindicatos em todos os estados, cada um promovendo o seu respectivo governo estadual e instituições do judiciário, enquanto mantêm as lutas dos professores divididas.

Nos estados governados pelo PT e PCdoB, a reabertura das escolas é tratada como um pressuposto, com os sindicatos pedindo com nervosismo que o governo priorize os professores na campanha de vacinação. No Ceará, atualmente o quarto estado com o maior número de mortes pela COVID-19, o governador Camilo Santana do PT declarou no mês passado: “Vamos voltar a partir de fevereiro, mas garantindo que tenhamos aulas presenciais e aulas remotas”. No Maranhão, o governador Flávio Dino do PCdoB anunciou que realizaria a testagem dos professores, o que significa que o governo irá reabrir as escolas.

A revolta sentida por milhões de estudantes e jovens diante das políticas criminosas da classe dominante levanta o espectro das ocupações de escolas em 2015-2016 em todo o país. Após anos de cortes nos investimentos em educação pelo governo de Dilma Rousseff do PT, o governo estadual do PSDB anunciou uma “reorganização escolar” no estado de São Paulo, que envolveria o fechamento de quase cem escolas e afetaria centenas de milhares de alunos e professores. Os estudantes responderam iniciando ocupações que se espalharam por todo o país em milhares de escolas e universidades e duraram mais de um ano.

A supressão dos protestos e ocupações foram os esforços dos sindicatos e das uniões estudantis controlados pelo PT e pela pseudo-esquerda, que semearam confiança no governo do PT a cada passo da luta dos estudantes, mesmo enquanto Rousseff introduzia novas medidas de austeridade contra a classe trabalhadora.

A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e a União Nacional dos Estudantes (UNE), que tiveram um papel crítico em desviar a luta dos estudantes durante as ocupações, publicaram uma nota conjunta dez dias antes do ENEM com o objetivo de limitar a oposição dos estudantes a um apelo ao governo para que adiasse a data do exame. Após descrever a situação grave da segunda onda da pandemia, a nota aponta “Diante da situação atual, mais uma vez, o MEC [Ministério da Educação] não dialoga com entidades e com a sociedade sobre a situação do ENEM, e como ela poderá ser realizada em segurança, mesmo sendo cobrado diversas vezes pela UNE e pela UBES”. Tal declaração é na prática um apoio à política criminosa do governo, que tem o aval das organizações pró-PT e da pseudo-esquerda para levar adiante as suas políticas de reabertura e imunidade de rebanho, contanto que haja medidas cosméticas presentes.

Os alunos e professores devem exigir a suspensão imediata de quaisquer exames presenciais e se opor à campanha pelo retorno às aulas presenciais. Eles só poderão levar adiante essa luta formando comitês de base independentes e em oposição aos sindicatos e organizações da pseudo-esquerda. Eles devem lutar para fechar as escolas e toda a produção não-essencial até que toda a população tenha sido imunizada, e exigindo que todas as famílias tenham a sua renda garantida.

Loading