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Por trás da decisão da GM de fabricar apenas veículos elétricos a partir de 2035

Parte dois

Publicado originalmente em 16 de fevereiro de 2021

Esta é a segunda e última parte do artigo. A primeira parte pode ser lida aqui.

Investimentos em EV: especulação e consolidação

Como todo grande desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, inclusive o surgimento da Internet na década de 1990, o setor de veículos elétricos é o receptáculo de níveis elevados de especulação em Wall Street. As empresas produtoras de veículos elétricos têm sido o centro de uma bolha cada vez mais frenética do mercado de ações, envolvendo somas de dinheiro que superam os investimentos reais feitos na própria tecnologia.

A Tesla é o exemplo mais notório alcançando um aumento ao longo da pandemia de cerca de 800% no valor de suas ações, mesmo com lucros relativamente pequenos nos últimos trimestres. A empresa tem uma capitalização de mercado de mais de US$ 800 bilhões, maior do que as outras nove maiores montadoras globais juntas, apesar do fato de que a Tesla, que produziu menos de 500.000 veículos no ano passado, controla menos de 1% do mercado automobilístico global. Essa capitalização levou a um aumento da fortuna do CEO, Elon Musk, para a quantia escandalosa de US$ 177 bilhões.

Uma nova placa é inaugurada na fábrica de montagem Detroit-Hamtramck, da General Motors, no dia 16 de outubro de 2020, em Hamtramck, Michigan. A montadora está investindo US$ 2,2 bilhões em sua fábrica para produzir caminhões e utilitários elétricos. O primeiro caminhão totalmente elétrico da GM será uma pickup com produção prevista para o final de 2021. (Foto: Carlos Osorio/AP)

Além da Tesla, uma série de startups, entre as quais praticamente nenhuma produz nem vende veículos atualmente, tornaram-se escoadouros para os enormes montantes de dinheiro que circulam nos mercados de ações devido à distribuição de bilhões de dólares feita pelos bancos centrais e à redução das taxas de juros.

Muitas dessas empresas têm levantado recursos por meio de empresas de aquisição de propósito específico (ou SPACs, na sigla em inglês), empresas de fachada criadas com o objetivo de adquirir outra empresa. As SPACs permitem que a empresa adquirida tenha acesso a mercados de ações (e ao atual investimento especulativo selvagem) sem ter que passar por um longo processo de revisão e pelos requisitos mais rigorosos de uma oferta pública inicial (IPO).

Mais de US$ 6 bilhões foram captados para empresas de EV via SPACs, de acordo com o Bank of America. As empresas que produzem baterias para EVs também estão de olho nas SPACs para se tornarem a mais recente “plataforma de pouso para investidores”, observou um relatório recente da TechCrunch.

Uma das startups de EV mais emblemáticas é a Lordstown Motors, que foi formada em 2018 e adquiriu o local da fábrica de montagem da GM em Lordstown quase de graça após o fechamento da planta em 2019. Ela realizou uma fusão reversa com a DiamondPeak Holdings em outubro do ano passado.

Apesar de ainda não ter produzido um único veículo, e das dúvidas crescentes entre os analistas sobre a capacidade competitiva da empresa em um cenário de EV cada vez mais disputado, a Lordstown Motors tem atualmente uma capitalização de mercado de US$ 4,44 bilhões, mais do que a centenária montadora de automóveis de luxo Aston Martin.

Os mercados responderam favoravelmente ao anúncio EV 2035 da GM, com o preço das ações subindo até 7,4% no comércio intradiário, fechando em 3,5%.

Os imensos custos associados à transição para EVs e a outras novas tecnologias veiculares têm impulsionado, ao mesmo tempo, novas ondas de abalos e consolidação na indústria automobilística. Além do exemplo mais proeminente, a fusão transatlântica entre a Fiat Chrysler e o PSA Group para formar a Stellantis, outras grandes montadoras estão correndo para fechar acordos de compartilhamento de custos e tecnologia.

Ford, Volkswagen, Daimler e BMW anunciaram, cada uma, parcerias nos últimos anos. Poucos dias após o anúncio EV 2035 da GM, a Ford declarou que dobraria seus investimentos projetados para EVs e veículos autônomos, totalizando US$ 29 bilhões até 2025, e posteriormente anunciou uma parceria com a gigante de tecnologia Google, planejando usar a tecnologia e os serviços da empresa para uma abrangência de suas operações.

A GM, por sua vez, revelou na última primavera que faria parceria com a Honda, anunciando no mês passado planos de produzir dois crossovers elétricos para a montadora japonesa, um em sua fábrica em Ramos Arizpe, no México, sob a placa de identificação Honda, e outro em Spring Hill, Tennessee, planta da marca Acura da Honda.

A GM também buscou incursões em modelos de energia alternativa no setor de caminhões comerciais. Inicialmente, havia planejado comprar uma participação de 11% na startup de caminhões Nikola, antes do fundador da empresa ter sido forçado a renunciar sob alegações de fraude (os dois, em princípio, ainda têm planos de colaborar na produção de um veículo). Mais recentemente, a GM anunciou uma parceria com a fabricante de caminhões pesados Navistar, juntamente com a gigante de logística JB Hunt, para produzir um caminhão com célula de combustível a hidrogênio.

O impacto da transição EV na força de trabalho

Como acontece com todos os avanços tecnológicos significativos sob o capitalismo, a mudança para EVs, somada aos desenvolvimentos em inteligência artificial e veículos autônomos, não estão sendo direcionados para a melhoria da sociedade ou melhoria das condições de trabalho. Pelo contrário, estão sendo usados para intensificar a exploração da classe trabalhadora.

Os EVs exigem muito menos componentes do que os veículos tradicionais. O modelo elétrico atual da GM, o Chevy Bolt, tem um motor com apenas três peças móveis, em comparação com as 113 de um motor a combustão, segundo a consultoria PwC. Um artigo de 2019 do sindicato dos trabalhadores da indústria automobilística dos EUA, o UAW (United Auto Workers) – que apresentou cortes massivos de empregos como um resultado quase inevitável da transição para veículos elétricos – citava executivos da Ford e da VW, que afirmaram que os EVs reduziriam as horas de trabalho por veículo em até 30%.

A reduzida mão de obra necessária para EVs será usada pelas empresas automotivas para realizar uma ampla reestruturação a fim de aumentar seus lucros, com o potencial de mais milhares de demissões e o aumento da miséria para aqueles que permanecem empregados.

De acordo com o site Autoblog, só nos EUA cerca de 100.000 trabalhadores são empregados em fábricas que fazem transmissões e motores a gás ou diesel. Uma onda massiva de falências e cortes de empregos pode varrer a já vulnerável indústria de autopeças. Cerca de 75 a 100 dos maiores fabricantes de peças “estão diante da irrelevância” se não garantirem um lugar na mudança para EVs, disse Paul Eichenberg, um consultor da indústria automotiva, ao Crain's Chicago Business.

O UAW reagiu ao anúncio de transição para veículos totalmente elétricos da GM com sua típica combinação de mentiras e nacionalismo reacionário. “O importante é que o presidente Biden concorde com nossa posição de que esses novos empregos que substituem os motores (de combustão interna) são empregos com salários e benefícios sindicais, criados aqui mesmo nos EUA”, afirmou o porta-voz do UAW, Brian Rothenberg.

Quais são os “empregos com salários e benefícios sindicais” a que se refere? Por mais de 40 anos, o UAW facilitou um acordo de concessão após o outro, negociando direitos conquistados pelos trabalhadores ao longo de décadas de luta, incluindo pensões, jornada de oito horas, aumento anual do custo de vida e muito mais. Ao mesmo tempo, permitiu que as empresas reduzissem os salários e expandissem amplamente o uso de empregos temporários de baixa remuneração, resultando em condições de trabalho semelhantes às da década de 1930, aceitando em troca milhões em subornos.

Pior, o UAW trabalhou em conjunto com as empresas automotivas durante a pandemia de COVID-19, conspirando com as empresas para garantir a reabertura prematura das fábricas e, em seguida, encobrir a disseminação de casos, o que resultou na morte de dezenas de trabalhadores da indústria automobilística.

Operários em greve fazem uma agitação do lado de fora da fábrica de montagem da GM em Bowling Green, Ky, no dia 16 de setembro de 2019. (Foto: Bryan Woolston/AP)

O UAW está desempenhando um papel fundamental na reestruturação da força de trabalho da GM em preparação para novas tecnologias. Em 2018, Cindy Estrada, então vice-presidente do UAW para a GM, assinou um memorando secreto de acordo que permitia à empresa substituir grande parte da força de trabalho da fábrica de montagem de Lake Orion por subcontratados. A Lake Orion, que produz veículos autônomos experimentais, é um importante laboratório da futura força de trabalho da empresa.

O UAW vendeu uma greve de 40 dias dos trabalhadores da GM em 2019, forçando um contrato que permite a expansão do uso de temporários e aprovou o fechamento de três fábricas nos EUA, incluindo a planta de Lordstown.

Se algum dia voltarem os empregos nas fábricas das montadoras que produzem peças de EV, como a planejada joint venture da GM com a fabricante de baterias LG Chem em Lordstown, eles serão em menor número e ganharão salários mais baixos. Enquanto isso, o esforço incansável para aumentar a lucratividade dos ricos investidores da GM resultará na “amazonificação” das condições de trabalho em todas as suas operações, com alta tecnologia de monitoramento dos trabalhadores para garantir a aceleração e o máximo de produção possível. Essas condições estão se desenvolvendo em toda a indústria automobilística e ainda mais amplamente.

Tecnologia, capitalismo e a luta pelo socialismo

As implicações sociais e econômicas da tecnologia dos veículos elétricos apresentam um paradoxo. Por si só, a nova tecnologia é um desenvolvimento positivo. Isso tornará os automóveis mais baratos e eficientes. Os veículos autônomos, que não estão muito distantes, têm ainda mais potencial.

E, no entanto, os benefícios dessa tecnologia, sob o sistema social atual – o capitalismo – se acumularão apenas para uma pequena minoria na forma de lucros crescentes e valores de ações. Enquanto isso, os trabalhadores podem prever demissões, pobreza e a destruição de grande parte da indústria existente, da qual dependem para seu sustento.

Além disso, a tecnologia EV já está se transformando em outro foco de conflito entre os Estados Unidos e a China, bem como do conflito crescente entre os EUA e seus antigos aliados na Europa. Em vez de usar essa tecnologia para a melhoria comum da humanidade, os Estados Unidos e as outras grandes potências estão tentando dominar essa poderosa nova tecnologia às custas de seus rivais, aumentando o perigo de um conflito militar catastrófico.

Este não é o resultado da tecnologia EV em si, ou da tecnologia em geral. É, na verdade, o produto do caráter irracional e ultrapassado do sistema capitalista. Cada novo avanço tecnológico – incluindo não apenas veículos elétricos, mas redes de celulares 5G mais rápidas, inteligência artificial e, terrivelmente, vacinas contra COVID-19 – agrava as contradições no cerne do sistema capitalista. Elas encontram-se entre o caráter socialmente coordenado do processo de trabalho e a acumulação privada de excedentes, na forma de lucros, pelos capitalistas, e entre a economia mundial globalmente integrada e o sistema de Estado-nação, que leva inevitavelmente à guerra.

Outro resultado, completamente diferente, é possível. A tecnologia dos veículos elétricos pode e deve ser usada para reduzir a jornada de trabalho na indústria automotiva, melhorar o acesso ao transporte e fazer parte de uma estratégia global para reduzir drasticamente as emissões de carbono.

Mas, para que esse potencial seja realizado, os trabalhadores devem unir-se internacionalmente para assumir o controle dos recursos colossais acumulados pelas corporações privadas e por seus investidores parasitas bilionários e, em vez disso, aproveitá-los para as necessidades da sociedade. Este é o programa do socialismo.

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