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Jeanine Áñez é presa por golpe na Bolívia

Na madrugada de sábado, a ex-presidente do regime do golpe boliviano de 2019, Jeanine Áñez, foi presa. Ela é acusada de “sedição, terrorismo e conspiração”. Ministros do seu governo e comandantes militares que desempenharam papeis centrais no golpe apoiado pelos EUA que derrubou o então presidente eleito Evo Morales do Movimiento al Socialismo (MAS) em 2019 receberam acusações similares.

Áñez chega a presídio feminino em La Paz, 15 de março. (Crédito: Ricardo Carvallo Terán - ABI)

Após passar o final de semana numa delegacia, Áñez foi transferida na segunda-feira a um presídio feminino em La Paz onde aguardará julgamento pelos próximos quatro meses. Outros dois ex-ministros, Álvaro Coimbra (Ministério da Justiça), e Rodrigo Guzmán (Ministério da Energia) já foram presos. Os ex-ministros Arturo Murillo (Ministério do Governo), Yerko Núñez (Ministério da Presidência) e Luis Fernando López (Ministério da Defesa), que também tiveram prisão ordenada pelo Ministério Público, estão foragidos.

A mesma ordem de prisão é direcionada ao ex-comandante em chefe das Forças Armadas Williams Kalimán, que em 10 de novembro de 2019 fez um pronunciamento televisivo “sugerindo” que “o presidente renuncie o mandato presidencial”, assim consumando o golpe. São igualmente acusados os chefes militares que acompanhavam Kalimán na transmissão: Palmiro Gonzalo Jarjury Rada (ex-comandante da Marinha), Jorge Gonzalo Terceros Lara (ex-comandante da Força Aérea Boliviana – FAB), Jorge Mendieta Ferrufino (ex-comandante do Exército) e Elmer Fernández Toranzo (general da FAB), e o ex-comandante da polícia Yuri Calderón.

O caso “Golpe de Estado”, através do qual transcorrem as investigações, é desdobramento de uma denúncia apresentada ao Ministério Público de La Paz pela ex-deputada do MAS Lidia Patty no final de novembro, após a eleição do atual presidente da Bolívia, Luis Arce do MAS.

Em sua denúncia, Patty também acusou lideranças políticas como o ultradireitista Luís Fernando Camacho, recém-eleito governador de Santa Cruz, que liderou os chamados “paros cívicos”, pela queda de Morales. O ministro da Justiça Iván Lima afirmou, contudo, que Camacho deve ter um “tratamento diferenciado” e que a “denúncia não pode ser motivo de uma conflagração no país”.

Outras indivíduos estão sendo processados por ações violentas que cometeram durante e após o golpe. O líder do “grupo de choque” fascista Resistência Juvenil Cochala (RJC), Yassir Molina, foi preso no final de semana, mas libertado em seguida por um tribunal em Sucre. O governo declarou que processará a juíza que o libertou.

Além das acusações sob o caso “Golpe de Estado”, Áñez e seus ministros tiveram outros cinco processos imputados pelo governo ao longo da semana. Na segunda-feira foram apresentadas acusações pelo “empréstimo irregular e oneroso” tomado pelo governo de Áñez do Fundo Monetário Internacional (FMI); a “prorrogação ilegal de concessão à Fundempresa [reguladora de atividades comerciais]”; a “violação de direitos humanos dos bolivianos residentes no Chile [que foram impedidos por semanas de ingressar em seu país]”; e por um decreto de “restrições durante a pandemia” que alegadamente atentou contra a “liberdade de expressão”.

Na terça-feira, o governo emitiu a quinta acusação a Áñez pelos massacres de Sacaba e Senkata, em que 36 pessoas foram mortas e mais de 500 feridas pelas forças do regime durante protestos contra o golpe. O ministro Lima disse ao La Razón que o caso dos massacres é “o mais importante para nós” por causa das exigências de justiça às vítimas e sobreviventes.

Familiares de vítimas do massacre de Sankara exigem justiça, 14 de março. (Crédito: Ricardo Carvallo Terán - ABI)

À televisão estatal boliviana, Lima afirmou que “o que buscamos não é uma detenção de quatro meses, mas uma sentença de 30 anos”, parafraseando a declaração de Arturo Murillo quando o regime do golpe acusou Evo Morales: “Isso é terrorismo e isso é sedição… Pedimos a sentença máxima de 30 anos na prisão”.

A detenção de Áñez e seus colaboradores foi repudiada pelas forças políticas alinhadas ao imperialismo que apoiaram o golpe de 2019. A Organização dos Estados Americanos (OEA), responsável por forjar descobertas de fraude eleitoral que serviram de pretexto à derrubada de Morales, agora ataca o direito da Bolívia de processar os conspiradores do golpe.

Em uma declaração emitida na segunda-feira, a OEA “manifesta sua preocupação em face do abuso de mecanismos judiciais que novamente se converteram em instrumentos repressivos do partido no governo”. A organização imperialista exige que nenhum julgamento seja realizado por cortes bolivianas, que todos os acusados sejam imediatamente libertados e que todo sistema judiciário seja “reformado” sob supervisão internacional!

Seguindo a mesma linha, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro – que representa o maior e mais influente país na região, e defende abertamente os interesses geopolíticos de Washington – também pronunciou-se em defesa de sua aliada fascistoide boliviana. Em reunião extraordinária da PROSUL, uma aliança de regimes direitistas sul-americanos, Bolsonaro afirmou que a prisão de Áñez por um “golpe de Estado” é “descabida” e exigiu que o “Estado de direito” seja mantido na Bolívia.

Durante a semana, aos gritos de “Foi fraude, não golpe!”, as forças da extrema-direita boliviana realizaram manifestações contra as prisões, defendendo o golpe contra Morales e renovando suas ameaças de derrubar o novo governo eleito do MAS. A maior delas ocorreu na noite de segunda-feira em Santa Cruz de la Sierra, o centro da oposição de direita no país.

O governador cruceño Luis Camacho falou ao público reunido aos pés da estátua do Cristo Redentor no centro da cidade: “A partir de hoje, só voltaremos a La Paz quando for para derrotar um governo tirano”. Rómulo Calvo, seu sucessor na liderança do reacionário Comitê Cívico de Santa Cruz, também discursou no evento, afirmando que seus seguidores estão dispostos a ir às ruas como “fizemos nos 21 dias [que antecederam o golpe]” e que já possuem a “receita para destituir e caçar um covarde”.

Camacho anunciou que Santa Cruz será convertida em um “centro de acolhimento dos perseguidos políticos”. Segundo uma representante, oComitê Cívico de Santa Cruz está abrigando cerca de 30 pessoas procuradas pela polícia que estariam supostamente “assustadas... com o aconteceu ao [líder] da Resistência Cochala”, e esse número chegará a centenas.

Na terça-feira, a filial de Cochabamba da Associação Nacional de Sub-Oficiais, Sargentos, Cabos, Policiais e pessoal Administrativo emitiu um comunicado público à sua direção nacional declarando-se em “estado de emergência em apoio a todos os camaradas que estão sendo convocados ante as autoridades cabíveis".

No dia seguinte, reuniram-se em Santa Cruz os representantes dos diferentes Comitês Cívicos do país para planejar suas ações. Eles ameaçaram realizar uma “greve nacional” caso não cessem as prisões e Áñez e seus ministros sejam liberados.

A decisão da Justiça boliviana e do governo do MAS de levar adiante os processos aos autores do golpe aconteceu sem dúvidas sob forte pressão popular.

O intervalo de um ano entre a derrubada de Morales e a eleição de Arce testemunhou uma série de protestos rebeldes das massas trabalhadoras e camponesas bolivianas, que exigiam a derrubada imediata do regime do golpe, justiça pelos massacres perpetrados pelo Estado, e condições econômicas dignas à população. Essa revolta foi contida – com dificuldade – pelo MAS, os sindicatos e movimentos sociais, e canalizada através de uma falida saída burguesa eleitoral.

Protesto da Associação de Feridos, Presos Políticos e Vítimas de Senkata, 16 de março. (Crédito: Ricardo Carvallo Terán - ABI)

O programa de “união nacional” defendido por Arce desde que eleito não reflete os anseios das massas bolivianas. Isso expressou-se na apatia registrada nas eleições locais bolivianas, que terão seu segundo turno em 11 de abril. O MAS teve um desempenho significativamente pior do que nas eleições de novembro, sendo derrotado em oito das dez principais cidades bolivianas, incluindo tradicionais bastiões eleitorais do partido como El Alto. O partido elegeu-se em três dos nove governos estaduais, e disputa o segundo turno em quatro deles.

Desde as prisões do caso “Golpe de Estado”, o nome de Arce só apareceu na imprensa boliviana em matérias denunciando seu silêncio sobre os eventos recentes. Figuras de direita como Iván Arias, ex-ministro de Áñez e agora prefeito de La Paz, buscaram separar o presidente de uma “ala radical” do MAS que ele acusou de gerar “enfrentamento no país, com o objetivo de antecipar as eleições e avançar uma revogação”. Questionado sobre a que forças políticas no MAS se referia, apontou a Evo Morales.

Apesar da aparente contradição política no interior do MAS, que finge balançar entre os interesses das massas trabalhadoras bolivianas e da elite dominante, somente os últimos são beneficiários do seu jogo duplo. A grande preocupação do MAS é que o imparável crescimento da oposição social na Bolívia não leve abaixo o regime burguês do país. Isso foi manifestado abertamente pelo ministro da Justiça Iván Lima, que parabenizou a “boa decisão” de Lidia Patty e do Ministério Público de “diminuir a intensidade dos processos criminais” em 2020, enquanto uma saída eleitoral para a crise política boliviana estava sendo costurada entre a classe dominante.

Enquanto isso, o ex-presidente Evo Morales, comumente retratado como uma figura “radical” em comparação a Arce, definiu nesta quarta-feira as tarefas políticas urgentes da seguinte forma: "Ao invés de confrontos políticos, a agenda pós-pandemia deve ser econômica, mediante um acordo nacional entre Estado, movimentos sociais e empresários para priorizar investimentos e gerar fontes de trabalho".

Os trabalhadores bolivianos enfrentam um momento crítico. As ameaças ditatoriais persistem. Elas estão, além do mais, sendo impulsionadas pelo terrível aumento da desigualdade social, com ao menos um milhão de bolivianos lançados à pobreza no último ano, e a prolongada crise da COVID-19, que já deixou 12.000 mortos no país e atingirá um nível catastrófico, seguindo o vizinho Brasil, caso medidas imediatas não sejam tomadas.

As condições para o enfrentamento desses riscos é o estabelecimento da independência política da classe trabalhadora em relação ao MAS, sindicatos e todas as forças políticas da burguesia.

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