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Em colapso sanitário, Brasil não poderá enterrar seus mortos de COVID-19

Publicado originalmente em 19 de março de 2021

O crescimento vertiginoso das contaminações e mortes por COVID-19 no último mês transformou o Brasil no epicentro mundial da pandemia do coronavírus. Em algum dia da semana que vem, é esperado que o país sul-americano atinja o marco sombrio de 300.000 mortes pela doença, das quais 100.000 terão ocorrido nos primeiros meses de 2021.

Pacientes de COVID-19 em leitos de hospital de campanha montado num centro esportivo em Santo André, São Paulo, quinta-feira, 4 de março, 2021 [Crédito: AP Photo/Andre Penner]

A média de contaminações no Brasil saltou de cerca de 45 mil casos diários em 18 de fevereiro a praticamente 72 mil em 18 de março. Na sexta-feira, foi registrado um recorde de 90.570 novos casos. Nas últimas quatro semanas, o número de brasileiros morrendo diariamente para a COVID-19 dobrou, e atingiu um recorde na terça-feira com 2.841 novas mortes.

Enquanto as massas trabalhadoras brasileiras se perguntam quando este pesadelo irá acabar, os desenvolvimentos recentes da pandemia demonstram que a catástrofe no país está longe de ter atingido seu ápice.

Nesta semana, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) alertou à que o “maior colapso sanitário e hospitalar da história do Brasil" já fora alcançado. Dados atualizados da quarta-feira indicam que 26 das 27 unidades federativas do país atingiram 80% da lotação dos leitos de UTI COVID. Em 19 capitais, esse número é superior a 90%.

Impossibilitados de receber tratamento adequado, pacientes graves estão morrendo nas filas de espera que incluem milhares de pessoas pelo país. Em Santa Catarina, estado com 97% de ocupação dos leitos de UTI e com mais de 450 pessoas na fila de espera, 130 pacientes já morreram sem receber tratamento intensivo. Hospitais do estado adotaram um chamado “Protocolo de alocação de recursos escassos durante a pandemia de COVID-19” com critérios para escolher quem receberá tratamento e uma chance de sobreviver, e quem será deixado para morrer.

A lotação das unidades de saúde levanta o risco iminente de desabastecimento generalizado de insumos médicos essenciais. Os estoques de medicamentos necessários para a intubação, incluindo anestésicos e bloqueadores musculares, já estão em falta nos hospitais do país. Uma reportagem da Folha de São Paulo apontou que 22 medicamentos de UTI já estão no limite.

O Ministério da Saúde brasileiro reconhece que a “expectativa da falta perigosa [de oxigênio gasoso] nos pequenos hospitais é de poucos dias", como afirmou o general Ridauto Lúcio Fernandes, assessor do Departamento de Logística, numa audiência pública ao Senado na quinta-feira. Ele acrescentou: “Isso está acontecendo em todo o Brasil".

Evolução da ocupação de leitos de UTI no Brasil de 7 de dezembro, início da segunda onda, até segunda-feira, 15 de março. (FIOCRUZ)

O Brasil está caminhando a passos rápidos para um próximo estágio da catástrofe da COVID-19, que envolve o colapso generalizado do sistema funerário. O médico e neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis – que há meses alertou que caso um lockdown nacional não fosse realizado imediatamente, “não daremos conta de enterrar os nossos mortos” – apontou esta semana a indícios de que esse prognóstico sombrio já está se concretizando.

Na quarta-feira, moradores de Vitória de Santo Antão, uma cidade no interior do Pernambuco, denunciaram, com registros fotográficos, pilhas de corpos em decomposição largadas a céu aberto no cemitério local. Nicolelis comentou a esse respeito no Twitter: “O colapso funerário geralmente começa assim. Em pequenas cidades.” Em entrevista ao UOL, o cientista descreveu tal situação como um “risco de magnitudes maiores, porque você começa a falar de infecções secundárias bacterianas, contaminação do solo, lençol freático, alimentos”.

Um dos principais fatores apontados por pesquisadores para a ascensão dos casos no Brasil é a dispersão da variante mais transmissiva do coronavírus originada em Manaus. Estudos indicam que a variante P.1 pode causar reinfecções e ser resistente à ação de vacinas, ameaçando a campanha de vacinação nacional que atingiu apenas a 5% da população com a primeira dose.

A geração da variante de Manaus, que hoje se espalha pelo planeta e ameaça a população mundial, foi o produto direto de um experimento da classe dominante com a política de “imunidade de rebanho”.

Após uma terrível primeira onda da pandemia, que provocou um colapso sanitário e funerário em Manaus, o governo direitista de Wilson Lima do Partido Social Cristão (PSC) fez uma aposta com a vida da população do estado promovendo a reabertura irrestrita das atividades econômicas, inclusive de escolas. Esse experimento foi repetido por todo o Brasil, que foi corretamente definido como um laboratório a céu aberto para a criação de variantes mais virulentas do coronavírus.

Mesmo diante dessa situação catastrófica, o presidente fascistoide brasileiro Jair Bolsonaro continua a perseguir a política de “imunidade de rebanho” e a normalização das mortes em massa. Numa declaração à imprensa de extrema-direita, ele insinuou que as notícias de lotação máxima dos leitos de UTI COVID eram falsas. Ele questionou: “Quantos são de Covid e quantos são de outras enfermidades?".

Entretanto, as alternativas à política abertamente sociopata de Bolsonaro apresentadas por seus ditos opositores entre os partidos burgueses brasileiros é, no melhor dos casos, uma política de negligência criminosa.

Há um ano, quando nem 50 pessoas haviam morrido de coronavírus no Brasil, o governador de São Paulo, João Doria do PSDB, fez uma declaração cinicamente indignada contra Bolsonaro: “Não são mortos de mentirinha, presidente, e essa não é uma ‘gripezinha’ [como Bolsonaro descreveu a COVID-19]”.

Desde então, mais de 66 mil mortes ocorreram no estado de São Paulo, 659 delas somente na quinta-feira. O Plano São Paulo de Doria para o combate à pandemia, baseado num sistema arbitrário de bandeiras coloridas, sem nenhum fundamento científico, provou-se um fiasco. Doria foi o protagonista de uma campanha pela reabertura insegura do maior sistema escolar do país, que matou dezenas de educadores e provocou centenas de surtos em unidades escolares desde fevereiro.

Também há um ano, enquanto Doria posava como paladino da ciência, os governadores dos estados do nordeste do Partido dos Trabalhadores (PT) e seus aliados do maoísta Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e do Partido Socialista Brasileiro (PSB), criaram o comitê científico do Consórcio do Nordeste, e convidaram o cientista Miguel Nicolelis para presidi-lo.

Nicolelis não somente já deixou a presidência do comitê, revelando o abismo existente entre a política desses governos e a ciência, como criticou abertamente a atitude do Fórum de Governadores, presidido por Wellington Dias do PT, em sua entrevista ao UOL nesta semana. “Eu estou esperando. Faz duas semanas que eu ouço os governadores dizerem que vão se organizar na tal comissão nacional [para implementação de um lockdown coordenado] que eu propus desde dezembro. O comitê científico do Nordeste apoiou. O ‘lero lero’ continua.”

Apesar dessas forças não oferecerem políticas minimamente consistentes para enfrentar a situação calamitosa das pandemia, Bolsonaro deixou claro que nenhuma medida de impedimento à circulação do vírus será tolerada. Na quinta-feira, o presidente entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar decretos de governadores que determinavam um “toque de recolher” nos estados da Bahia, Distrito Federal e Rio Grande do Sul, declarando-os inconstitucionais.

Defendendo sua ação judicial, Bolsonaro reforçou suas ameaças ditatoriais fascistizantes, que caminham lado a lado com sua política genocida frente à pandemia. Caso o STF não decida a seu favor, ele afirmou que o governo tomará a tarefa em suas próprias mãos. “Será que a população está preparada para uma ação social do governo federal dura no tocante a isso? Que que é dura? É para dar liberdade para o povo. É para dar o direito do povo trabalhar. Não é ditadura, não”. Sim, é exatamente isso.

O coronavírus não reconhece fronteiras nacionais. Uma pandemia descontrolada no Brasil é uma pandemia fora de controle em todo o mundo. A classe trabalhadora deve responder a essas condições catastróficas e às ameaças colocadas pela classe dominante em todos os países através de uma ação política independente, parando todas as atividades econômicas não-essenciais, garantindo renda integral às famílias trabalhadoras e lutando por um programa socialista e internacionalista contra as políticas capitalistas de ditadura e morte.

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