Português

Política de “imunidade de rebanho” de Bolsonaro levou a colapso de saúde em Manaus e infecção em massa de indígenas no Brasil, diz pesquisador Lucas Ferrante

Parte Dois

Na segunda parte da entrevista com Lucas Ferrante, o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) fala sobre a negligência criminosa do governo do presidente fascistoide Jair Bolsonaro e seus aliados locais na implementação da política de imunidade de rebanho em Manaus e a política criminosa contra os povos indígenas no Brasil durante a pandemia.

Leia a primeira parte da entrevista aqui.

Manaus: Negligência que resultou em “crime de pandemia com resultado morte”

Lucas Ferrante, pesquisador do INPA (CNPq)

Todos os alertas que Lucas Ferrante e seus colaboradores publicaram nas mais prestigiadas revistas científicas do mundo nos primeiros meses da pandemia foram ignorados pelo governador do Amazonas, Wilson Lima, aliado local de Bolsonaro. Por duas vezes, em abril de 2020 e janeiro de 2021, Manaus chocou o mundo com as imagens de valas comuns sendo cavadas para vítimas da COVID-19 e pacientes desesperados morrendo por falta de oxigênio nos hospitais da cidade.

Segundo Ferrante, a partir dessas publicações, “O Ministério Público do Estado do Amazonas ... entrou em contato comigo para participar de uma nota técnica. Eu coordenei essa nota técnica e nós falávamos que Manaus precisaria de um lockdown no dia 1˚ de junho de 2020. Nessa mesma data, o governador do Estado do Amazonas decidiu abrir as atividades não essenciais no estado.”

Depois, ao longo de todo o segundo semestre de 2020, “nós apresentamos modelos epidemiológicos falando que Manaus iria ter uma segunda onda ... Fomos completamente negligenciados, chegaram a disseminar fake news, calúnia. Eu, que era o líder dos estudos, fui ameaçado de morte. Houve represália política.

“Eu cheguei a apresentar os modelos epidemiológicos na Assembleia Legislativa do Amazonas, na comissão de saúde. Os deputados me questionaram em novembro de 2020 [início da segunda onda]: ‘o senhor fala que daqui dois meses Manaus vai ter seis mil óbitos. Como nós vamos triplicar o número de óbitos?’ Em janeiro de 2021, no auge da segunda onda, Manaus teve 6.500 mortes por COVID. Até aquele momento da pandemia, Manaus havia tido dois mil óbitos.”

Então, durante a segunda onda, Ferrante continua, “Houve o colapso do sistema de saúde ... [O ex-ministro da saúde de Bolsonaro, Gen. Eduardo] Pazuello deixou faltar oxigênio. Qual a estratégia ideal para levar oxigênio para Manaus? Uma demanda urgente, via aérea, com um avião da Força Aérea Brasileira. Médio-longo prazo, via cabotagem pelo Rio Madeira, que é muito mais barato, muito mais rápido. Na época, o rio Madeira estava no ápice da cheia e totalmente trafegável. Em dois dias o oxigênio estaria em Manaus.

“O ministro Pazuello decidiu, junto com o DNIT (Departamento Nacional de Trânsito), enviar o oxigênio pela rodovia BR-319, uma promessa de campanha do governo Bolsonaro ... Levou seis dias para chegar em Manaus. A pior estratégia logística ... para promover lobby de uma promessa de campanha de Bolsonaro.

“Não era para faltar oxigênio em Manaus. E nós avisamos com quatro meses de antecedência e apontamos as duas rotas de urgência e de médio e longo prazo mais barata e mais rápida para chegar. Então aquilo foi negligência, responsabilidade com resultado morte, do ex-ministro Pazuello e do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro.”

Hospital de Manaus durante a crise de oxigênio na segunda onda (Twitter)

Ferrante também apontou para o papel da Zona Franca de Manaus, uma região da cidade com cerca de 600 indústrias que emprega meio milhão de pessoas direta e indiretamente, e da reabertura de escolas para a explosão da segunda onda da pandemia na cidade.

“Ao longo de toda a pandemia”, segundo ele, “as empresas de Manaus não pararam, a Zona Franca nunca parou ... Antes e quando a segunda onda começou, os bairros que mais apresentavam casos de COVID eram os bairros industriais. Então, sem dúvida nenhuma, indústrias e fábricas contribuíram para a disseminação da COVID, até porque os protocolos não eram tão eficientes.

“Isso manteve a pandemia ativa, com uma taxa de transmissão comunitária constante, [o que] contribuiu para o surgimento da segunda onda... [Porém] uma coisa que estava estável, explodiu com o retorno das aulas presenciais.

“Avisamos que o retorno das aulas presenciais [no final de setembro de 2020] iria desencadear a segunda onda várias vezes em várias reuniões com o Ministério Público, a Assembleia Legislativa do Amazonas, o Governo do Estado, a Secretaria de Saúde do Estado. Exatamente 21 dias depois, a segunda onda começou, e em janeiro de 2021 o sistema de saúde entrou em colapso.

“[Essa] estratégia [foi] orquestrada pelo Presidente da República e o governador do Amazonas, Wilson Lima para promover um retorno das aulas presenciais antes que os outros estados para levar Manaus à imunidade de rebanho ... Isso não levou à imunidade de rebanho, mas ao surgimento de uma nova variante, a variante Gama, que hoje é responsável por dois terços das mortes no Brasil. Ou seja, confirma-se crime de resultado pandemia com resultado morte pelo Presidente da República, governador do Estado do Amazonas e o ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello, o que foi confirmado pelo relatório da CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Brasileiro] e por nós em um artigo científico no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities. Isso já é dado científico revisado pelos pares e publicado. É fato.

“Alguns juristas se negavam a admitir crime de pandemia com resultado morte porque falavam que Bolsonaro não deu origem à pandemia. Ele não deu, mas ele, Pazuello e o governador Wilson Lima deram origem à variante Gama por negligência política, estimulando uma política pública equivocada para tentar fazer a população chegar à imunidade de rebanho.”

O papel da hidroxicloroquina na crise de Manaus

A hidroxicloroquina teve um papel central na política de imunidade de rebanho do governo Bolsonaro ao longo de toda a pandemia, especialmente em Manaus durante a segunda onda. Enquanto estava faltando oxigênio na cidade, o governo estava recomendando o uso da hidroxicloroquina, como parte do chamado “kit COVID”, nos hospitais em colapso de Manaus.

Lucas Ferrante disse que a promoção frenética pelo governo Bolsonaro da hidroxicloroquina, um medicamento cuja ineficácia contra a COVID-19 já estava amplamente comprovada, levou as pessoas a acreditarem que “o remédio resolveria o problema e que elas não precisariam ficar em casa. Então, isso ajudou a aumentar a transmissão comunitária.”

Ainda segundo ele, “existe um estudo publicado no The New England Journal of Medicine que revisou os efeitos da hidroxicloroquina. Ela aumenta em média em 3 dias o tempo de internação, aumenta o risco de óbito e necessidade de ventilação, e aumenta a gravidade dos sintomas e a carga viral do paciente. Então, o que você tinha? Pacientes dependendo de mais tempo de internação, precisando de intubação por conta da hidroxicloroquina e um quadro muito pior, inclusive com maior risco de morte. Então isso agravou o colapso do sistema de saúde. Você estava dando uma droga que piorava o quadro dos pacientes com COVID, precisando em média, para cada paciente que tomava hidroxicloroquina, três dias a mais do hospital, o que num colapso é gravíssimo. Três dias de um paciente é crucial para você dar a vaga para outro. Agora, considere todos que receberam hidroxicloroquina, se aumentar o tempo em três dias.

“Isso também é de responsabilidade do presidente Bolsonaro e do Ministério da Saúde, especificamente do ex-ministro Pazuello, pois forçar essa iniciativa [o uso da hidroxicloroquina] ajudou a contribuir para o colapso do sistema de saúde em Manaus e aumentar o número de mortes na segunda onda.”

A pandemia de COVID-19 e os crimes de Estado contra os povos indígenas

Durante a campanha eleitoral presidencial de 2018, Bolsonaro disse em um de seus comícios: “Onde tem uma reserva indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que mudar isso aí ... não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola [durante o meu mandato]”. Desde que assumiu o poder, em 2019, ele tem colocado essa declaração em prática.

A maior parte dos 775 mil indígenas no Brasil, distribuídos em 436 terras indígenas por uma área equivalente a 14% do território nacional, estão localizados na região norte do país, particularmente no estado do Amazonas. Logo reconhecendo que a pandemia poderia fazer crescer as violações aos direitos indígenas, particularmente as invasões de suas terras, e a ameaça que uma doença infecciosa como a COVID-19 representava aos povos indígenas, Lucas Ferrante publicou em abril de 2020 uma letter na Science com medidas para proteger os povos indígenas.

Indígenas protestando em Brasília no ano passado contra o “Marco Temporal”, que dificulta a demarcação de terras indígenas no Brasil (Crédito: Raissa Azeredo/Aldeia Multietnic)

Segundo Ferrante, “Falávamos [na letter] da necessidade de isolamento social, inclusive evitar trânsito aéreo para o Amazonas, evitar trânsito de barcos. Essa suspensão seria crucial principalmente para não fazer o vírus se disseminar pelo interior. E ainda classificamos os povos indígenas como grupo de risco e prioritário para ser vacinado por fatores genéticos. Os vírus respiratórios sempre foram utilizados como armas contra os povos indígenas.”

Nenhum desses alertas levou à implementação de políticas públicas para proteger os povos indígenas brasileiros. Pelo contrário. Em 2020, no primeiro ano da pandemia, a invasão de terras indígenas cresceu 137% em relação a 2018. A taxa de vacinação entre os indígenas, que têm um histórico de ampla adesão às campanhas de vacinação no Brasil, é de cerca de 50%, muito inferior aos 70% da população do país. Apenas no início deste ano, um ano e meio após determinação do Supremo Tribunal Federal, o governo Bolsonaro estabeleceu o Comitê Gestor dos Planos de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas.

Segundo Ferrante, em várias publicações, “Nós mostramos medidas provisórias específicas, ou até decretos presidenciais do próprio Bolsonaro ... com projetos armamentistas para os ruralistas e para favorecer esses grupos que estão invadindo terras indígenas. Então ele está armando esses grupos, desmontando a legislação ambiental e a fiscalização para favorecer isso, negando direitos básicos, suprimentos médicos e até água potável para os povos indígenas. Ricardo Salles, ex-ministro do meio ambiente, chegou a punir fiscais do Ibama que fiscalizaram adequadamente terras indígenas no Pará. É um processo construído para esse genocídio.”

Um dos artigos “questiona essa intenção do governo federal de querer classificar garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais. Isso é ridículo. Assim, eles passariam a ter direito a essas áreas indígenas. Nós mostramos que tem mais de 20 mil garimpeiros nas terras Ianomâmis [no Amazonas e Roraima] utilizando o coronavírus como arma contra esses indígenas.” Em outro artigo, “a gente mostra que a morte de um líder indígena, de um cacique, representa a extinção de uma etnia porque o conhecimento deles é oral, transmitido pelos mais velhos, que fazem parte do grupo de risco.”

A BR-319, que o governo Bolsonaro utilizou para levar oxigênio a Manaus, é uma rodovia que desde 1988 não tem a maior parte dos seus quase 900 km asfaltado, e liga Manaus a Porto Velho, capital de Rondônia. Os trabalhos de Ferrante têm apontado que ao longo da rodovia há uma combinação de desmatamento e ameaça aos povos indígenas.

“Nós tivemos dois artigos publicados em 21 de janeiro, um na Science e o outro na Nature, sobre a questão indígena e um novo ciclo de desmatamento para a Amazônia. Essa nova publicação na Nature mostra que, via rodovia BR-319, está surgindo um novo ciclo de desmatamento na Amazônia. Plantadores de soja do Mato Grosso do Sul estão migrando para Rondônia, adquirindo terras a um valor extremamente alto de pecuaristas, e esses pecuaristas, que pegaram um montante de dinheiro muito grande, estão indo comprar terras baratas na rodovia BR-319.

“Em um outro trabalho publicado no ano passado ... nós mostramos uma rede de grilagem de terras na BR-319, inclusive invadindo terras indígenas em que os invasores estão usando o coronavírus como arma para dizimar esses indígenas. E o desmatamento na rodovia BR-319 tem uma taxa três vezes maior do que o de toda Amazônia. Nós demostramos nesse artigo que o desmatamento se iniciou após a promessa de pavimentação em 2015.

“São, ao todo, mais de 18 mil indígenas vivendo no interflúvio Purus-Madeira e na área afetada pela rodovia BR-319, que deveriam ser consultados [para o asfaltamento da rodovia] como estabelece a convenção 169 da OIT ... [e] se recusam fazer a consulta a esses povos indígenas. Isso também representa uma violação aos direitos dos povos indígenas.”

Loading