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Brasil ultrapassa 650 mil óbitos por COVID-19 enquanto classe dominante adota narrativa da “endemia”

Publicado originalmente em 8 de março de 2022

Na semana passada, o Brasil chegou à terrível marca de 650 mil mortes por COVID-19 enquanto o governo do presidente fascistoide Jair Bolsonaro está adotando oficialmente a narrativa de uma COVID-19 “endêmica”.

Em fevereiro, o país registrou 22 mil óbitos, o que corresponde a uma média de quase 800 mortes por dia. Mais de 3 mil pessoas perderam as suas vidas na semana passada e centenas continuam morrendo de COVID-19 todos os dias. Na Folha de S. Paulo, o epidemiologista da Fiocruz, Jesem Orellana, apontou para a grave situação da pandemia no país: “A marca de cerca de 650 mil mortes conhecidas no Brasil é tragicamente alta (segunda maior do planeta) e, na prática, é ao menos 15% maior, devido à subnotificação”.

Orellana acrescentou: “Não é impossível chegarmos a 700 mil ou mesmo 800 mil mortes conhecidas por COVID-19, pois se continuarmos colocando a agenda econômica acima da vida, seguiremos tendo mais e mais mortes evitáveis, sem qualquer benefício econômico, tal como testemunhamos nestes dois anos de pandemia no Brasil, um duplo desastre, sanitário e econômico”.

Em uma entrevista para o SOS Brasil Soberano, o neurocientista Miguel Nicolelis deu a escala do cenário de subnotificação no Brasil, que impede determinar a real trajetória da pandemia no país. Ele apontou para as estimativas do instituto de estatísticas em saúde da Universidade de Washington (IHME) sobre o real número de casos no Brasil durante o espalhamento da Ômicron: “Se a subnotificação já era de 10 a 20 vezes nas semanas anteriores ao Carnaval, agora não daria nem para calcular... Alguns modelos sugerem que nós passamos de 2 milhões de casos por dia no pico [da variante Ômicron em janeiro-fevereiro]”.

Contrariando a narrativa promovida desde novembro pelo governo e a mídia corporativa de que a Ômicron é “leve”, Nicolelis explicou: “Se somarmos os últimos dois meses, todas as causas de morte, nós tivemos mais mortes nesses dois meses em 2022 do que nos mesmos dois meses de 2021”. Em janeiro e fevereiro do ano passado, o Brasil estava vivenciando o surto de óbitos pelo espalhamento da variante Gama, que alcançaria o seu pico em março e abril, impulsionado pela reabertura das escolas.

Hoje, um mês após o início do ensino presencial obrigatório e com somente 45% das crianças entre 5 e 11 anos tendo tomado a primeira dose da vacina no país, existe um novo surto de casos entre essa faixa etária. Um boletim da Fiocruz mostrou que o número de casos diários de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) até o último dia 28 já é igual ao seu pico na última semana de 2021, com 400 casos por dia. A Fiocruz alerta que “os dados laboratoriais preliminares sugerem interrupção de queda nos resultados positivos para SARS-CoV-2 (COVID-19)” nessa faixa etária.

Em 4 de março, Belo Horizonte registrou aumento da ocupação de leitos de UTI de COVID-19, de 40,1% para 43,7% em 24 horas. Hoje, a ocupação dos leitos de UTI pediátricos é de 100% na capital em Salvador e no Distrito Federal.

O aumento nos casos de COVID-19 e internações contrasta com a resposta do governo e da mídia, com as notícias sobre a pandemia tendo desaparecido da capa dos maiores jornais antes mesmo do início da guerra na Ucrânia. Diante da atual situação, Bolsonaro, acompanhando o movimento das classes dominantes ao redor do mundo, tuitou na semana passada que o ministério da Saúde “estuda rebaixar para endemia a atual situação da COVID-19 no Brasil”, com uma decisão esperada nos próximos dias.

Quase ao mesmo tempo, o governador do estado de São Paulo, João Doria, anunciou que a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais abertos será removida a partir desta quarta-feira. Desde segunda-feira, a obrigatoriedade em qualquer estabelecimento é decidida por cada prefeitura no estado do Rio de Janeiro, com a capital tendo decretado imediatamente o fim da obrigatoriedade em locais fechados. Nos últimos dias, variações dessas regras foram anunciadas em Minas Gerais, Mato Grosso e Distrito Federal, e o fim do uso em locais abertos já era permitido desde novembro no Maranhão, estado governado por Flávio Dino do Partido Socialista Brasileiro (PSB).

Transporte público após a liberação do uso de máscaras em lugares fechados pela prefeitura do Rio de Janeiro. (Agência Brasil)

Na semana passada, o secretário de Saúde do estado de São Paulo, Rossieli Soares, declarou que uma decisão será tomada nas próximas duas semanas sobre o uso de máscaras dentro das salas de aula. Antes de ser barrada por uma liminar neste sábado, as máscaras haviam deixado de ser obrigatórias para crianças menores de 12 anos no estado do Rio Grande do Sul desde o dia 26.

As declarações de Bolsonaro e dos governadores ignoram criminosamente a experiência com a pandemia nos últimos dois anos. A transmissão contínua do SARS-CoV-2 permitiu o surgimento de mutações mais transmissíveis e o contágio de pessoas que já haviam sido acometidas pelo vírus. Apesar de ainda não ter se tornado significativa no Brasil, a subvariante BA.2 da Ômicron, mais transmissível, já é a cepa dominante em diversos países.

Na CNN Brasil, o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Alexandre Naime Barbosa, disse sobre a subvariante: “Podemos dizer que nos próximos dois meses, a tendência é que haja queda do número de casos, quedas no número de internação. Isso se não surgir nenhuma variante. Agora, se a BA.2 começar a predominar, podemos ter problemas entre seis, oito ou 12 semanas”.

Após meses em que a Ômicron foi declarada “leve” pelos governos e a mídia corporativa ao redor do mundo, a pandemia estaria chegando a um suposto estágio “endêmico”, em que a morte em larga escala passaria a ser aceitável.

A vacinação tem sido promovida como a única medida de controle do vírus, a ser tratado como a gripe. O uso enganoso do conceito de endemia pelo governo Bolsonaro, seguindo os passos do governo de Joe Biden nos EUA, tem como objetivo justificar a aceitação de um “novo normal” de mortes em larga escala e milhões de pessoas sofrendo com os efeitos da COVID longa.

Entre os cientistas denunciando a adoção da COVID-19 “endêmica”, a epidemiologista australiana, Dra. Raina MacIntyre, explicou: “A negação da ciência da epidemiologia é ampla, mesmo entre ‘especialistas’. Dizem repetidas vezes que o SARS-CoV-2 se tornará ‘endêmico’. Mas nunca será endêmico porque é uma doença epidêmica e sempre será. A principal diferença é o espalhamento. Como uma doença epidêmica, o SARS-CoV-2 sempre irá encontrar pessoas não vacinadas, subvacinadas ou com imunidade em queda e se espalhará rapidamente por esses grupos. Tipicamente, as verdadeiras infecções epidêmicas são disseminadas de pessoa para pessoa, sendo a transmissão aérea o pior caso, e apresentam um padrão de crescimento e queda como já vimos com várias ondas do SARS-CoV-2. Os casos aumentam rapidamente ao longo de dias ou semanas, como já vimos com a Alfa, Delta e Ômicron. Nenhuma doença verdadeiramente endêmica ‒ a malária, por exemplo ‒ faz isso”.

Além disso, em conjunto com a narrativa da “endemia”, a campanha pelo fim das medidas de proteção contra a COVID-19 cria as condições para a exploração desenfreada da classe trabalhadora, com uma pressão cada vez maior para que trabalhadores com sintomas retornem aos locais de trabalho e as crianças permaneçam nas escolas independentemente do risco de surtos, para garantir que seus pais continuem nas fábricas, depósitos e ambientes lotados para garantir os lucros das grandes empresas.

A vacina é um componente crítico no combate à pandemia, mas as repetidas campanhas midiáticas e do governo pela aceitação da pandemia estão mostrando seu efeito nefasto na diminuição das taxas de vacinação. Apenas 40,37% das pessoas acima de 18 anos tomaram a dose de reforço em todo o Brasil e, no estado de São Paulo, o número de doses de reforço aplicadas caiu de 1.734.966 na segunda semana de janeiro para 443.662 na semana passada.

Em oposição à campanha dos governos capitalistas, forçando a população a aceitar o “novo normal” de infecções e mortes pela COVID-19, a classe trabalhadora deve lutar pela construção de um movimento massivo para pôr fim à pandemia.

Somente medidas de saúde pública duras como lockdowns temporários, a testagem e o rastreamento de contatos massivo, a vacinação de toda a população mundial, o uso de máscaras e outras são capazes de pôr fim à infecção e morte em larga escala.

O entendimento da necessidade de medidas de proteção coletivas é decisiva para a implementação de um programa de eliminação-erradicação. Na página do Comitê de Base pela Educação Segura no Brasil (CBES-BR), trabalhadoras expressaram essa necessidade, denunciando a remoção das restrições contra a COVID-19.

Karla, uma mãe no Distrito Federal, denunciou a campanha pelo fim do uso de máscaras e o acobertamento das políticas de COVID-19 em relação às escolas: “Aqui no DF, o desgovernador liberou novamente o não uso de máscaras nos ambientes abertos, não há notícias sobre a situação nas escolas, sempre foi encoberto e mentiroso, nunca vão expor qualquer situação negativa que porventura haja”.

Ela apontou para a possibilidade de novos surtos após o feriado de Carnaval na semana passada, denunciou a narrativa da “endemia” e defendeu o uso das medidas de proteção: “Vamos aguardar o pós-Carnaval, onde houve muitas aglomerações sem qualquer cuidado e proteção. Não escuto nada referente a liberação das máscaras nas escolas. O que escutei hoje é que o louco dito ministro da Saúde quer trocar pandemia por endemia. A única certeza absoluta que tenho é que vou continuar usando máscaras, mantendo o distanciamento social e levando meu litrão de álcool 70% junto, não tenho nenhuma dificuldade ou transtorno em continuar me protegendo”.

Esmeralda, uma professora no estado do Ceará, criticou o fim da obrigatoriedade das máscaras: “Me parece que o Rio Grande do Sul vai desobrigar o uso de máscaras. Não gostaria que o mesmo acontecesse por aqui. Usar máscara é muito ruim, mas muito necessário ainda.”

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