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1968: A greve geral e a revolta estudantil na França

Parte 3: Como a JCR de Alain Krivine encobriu as traições do stalinismo (1)

Esta é a terceira parte de uma série de artigos publicada originalmente no World Socialist Web Site entre maio e junho de 2008, quando se completaram 40 anos da greve geral de 1968 na França.

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O presidente de Gaulle e sua Quinta República devem a sua sobrevivência política em maio de 1968 ao stalinista Partido Comunista Francês (PCF) e seu braço sindical — a Confederação Geral do Trabalho (CGT). Entretanto, a influência do PCF tinha diminuído visivelmente entre 1945 e 1968. A fim de sufocar a greve geral, os stalinistas contaram com o apoio de outras forças políticas — que atingiam uma camada mais radicalizada, mas, ao mesmo tempo, asseguravam seu domínio político sobre o movimento de massas.

A esse respeito, um papel importante foi protagonizado pelo Secretariado Unificado pablista, dirigido por Ernest Mandel, com seus apoiadores franceses: a Jeunesse Communiste Révolutionnaire (JCR – Juventude Comunista Revolucionária), dirigida por Alain Krivine, e o Parti Communiste Internationaliste (PCI – Partido Comunista Internacionalista), encabeçado por Pierre Frank. Eles evitaram que a radicalização da juventude se desenvolvesse em uma alternativa revolucionária séria e, assim, ajudaram os stalinistas a manterem a greve geral sob controle.

No final da Segunda Guerra Mundial, o PCF tinha adquirido uma autoridade política considerável, devido à vitória do Exército Vermelho Soviético sobre a Alemanha nazista e o papel do próprio partido francês no movimento antifascista da Résistance. A burguesia francesa, na forma do regime de Vichy, desacreditou a si própria por meio de colaborações com os nazistas. Havia, também, um poderoso anseio na classe trabalhadora por uma sociedade socialista, que estendeu-se para os membros do PCF. Entretanto, o líder do PCF naquele tempo, Maurice Thorez, usou toda sua autoridade política para restabelecer o regime burguês. Thorez participou pessoalmente do primeiro governo pós-guerra estabelecido por De Gaulle e foi essencial para assegurar que a Résistance fosse desarmada.

O apoio ao PCF diminuiu gradualmente, devido ao seu papel em reestabilizar a sociedade burguesa do pós-guerra. O partido concedeu seu apoio às guerras coloniais contra o Vietnã e a Argélia e foi ainda mais desacreditado com as revelações dos crimes de Stalin, em 1956, no discurso feito por Nikita Khrushchev, seguido pela repressão sangrenta das tropas stalinistas às revoltas populares na Hungria e Polônia. Ao mesmo tempo em que o PCF, em 1968, era o maior partido, com membros da classe trabalhadora, ele perdeu largamente a sua autoridade entre os estudantes e a juventude.

Em particular, a Union des Étudiants Communistes (UEC – União dos Estudantes Comunistas) estava em crise profunda. De 1963 em diante, várias frações emergiram na UEC – a “italiana” (apoiadores de Gramsci e do Partido Comunista Italiano), a “marxista-leninista” (apoiadores de Mao Zedong) e a “trotskista” – que foram, então, expulsas, e estabeleceram suas próprias organizações. Foi esse o período do surgimento da chamada “extrema esquerda”, cujo aparecimento no cenário político marcou “o início da ruptura de uma parte dos militantes ativos da juventude com o PCF”, de acordo com a historiadora Michelle Zancarini-Fournel, em seu livro sobre o movimento de 1968. [1]

A autoridade da CGT também estava sob uma pressão crescente em 1968. Sindicatos rivais – como a Force Ouvrière e a Confédération Française Démocratique du Travail (CFDT – Confederação Francesa Democrática do Trabalho), naquele tempo sob a influência de um partido de esquerdista-reformista, o Parti Socialiste Unifié (PSU) – impuseram posturas militantes e desafiaram a CGT. A CFDT, particularmente, conseguiu o apoio do setor de serviços e do funcionalismo público.

Sob essas circunstâncias, os pablistas, organizados no Secretariado Unificado, protagonizaram um papel muito importante, defendendo a autoridade dos stalinistas e preparando a liquidação da possível greve geral.

As origens do pablismo

O Secretariado Unificado pablista surgiu no início dos anos 1950, como resultado de um ataque político ao programa da Quarta Internacional (QI). O secretário da QI, Michel Pablo, rejeitou todas as análises do stalinismo que formaram a base para a fundação da Quarta Internacional por Leon Trotsky em 1938.

Analisando a derrota do proletariado alemão em 1933, Trotsky concluiu que a dimensão da degeneração stalinista da Internacional Comunista (Terceira Internacional) tornava insustentável qualquer política baseada na reforma da Internacional. Desde a traição política do Partido Comunista Alemão, que possibilitou a ascensão de Hitler ao poder, e a subsequente recusa da Internacional Comunista a tirar qualquer lição do desastre alemão, Trotsky concluiu que os partidos comunistas tinham passado, definitivamente, para o lado da burguesia. Ele insistiu que o futuro da luta revolucionária dependia da construção de uma nova direção proletária. Assim ele escreveu no programa de fundação da Quarta Internacional: “A crise da direção do proletariado, que se transformou na crise da civilização humana, só pode ser resolvida pela Quarta Internacional”.

Pablo rejeitou essa concepção. Ele concluiu, a partir do aparecimento de novos estados operários deformados na Europa Ocidental, que o stalinismo poderia representar um papel historicamente progressista no futuro. Tal perspectiva equivaleria à liquidação da Quarta Internacional. Segundo Pablo, não havia razão para construir seções da Quarta Internacional independentementes das organizações stalinistas de massa. Ao invés disso, a tarefa dos trotskistas se reduzia ao entrismo nos partidos stalinistas existentes e ao apoio aos supostos elementos esquerdistas dentro de suas direções.

Pablo acabou rejeitando toda a concepção marxista a respeito do partido proletário, que insiste na necessidade de uma vanguarda consciente política e teoricamente. Para Pablo, o papel da direção poderia ser representado por forças não-marxistas e não-proletárias, como sindicalistas, reformistas de esquerda, nacionalistas pequeno-burgueses e movimentos de libertação nacional em países coloniais ou semicoloniais, que poderiam ser empurrados à esquerda sob a pressão das forças objetivas. Pablo, pessoalmente, colocou-se a serviço da Front de Libération Nationale (FLN – Frente de Liberação Nacional da Argélia), e, após sua vitória, participou do governo da Argélia por um período de três anos.

O ataque de Pablo rachou a Quarta Internacional. A maioria da seção francesa rejeitou suas revisões e foi burocraticamente expulsa pela minoria dirigida por Pierre Frank. Em 1953, o Socialist Workers Party (SWP) dos EUA respondeu às revisões pablistas com uma crítica devastadora e publicou uma Carta Aberta com um chamado para a unificação internacional de todos os trotskistas ortodoxos. Isso criou a base para surgimento do Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI), que incluía a maioria francesa.

Entretanto, o SWP não manteve sua oposição ao pablismo por muito tempo. No transcorrer dos dez anos seguinte, o SWP deixou de lado suas diferenças com os pablistas e se uniu a eles para formar o Secretariado Unificado (SU), em 1963. Nesse meio tempo, a liderança do SU tinha sido substituída por Ernest Mandel. Pablo cumpriu um papel cada vez mais secundário e deixou o Secretariado Unificado logo depois. A base para a unificação em 1963 foi, sem dúvida, o apoio a Fidel Castro e seu movimento nacionalista e pequeno-burguês, o “Movimento 26 de Julho”. Segundo o Secretariado Unificado, a tomada do poder por Castro em Cuba transformou o país caribenho em um Estado Operário, com Castro, Ernesto “Che” Guevara e outros líderes cubanos protagonizando o papel de “marxistas natos”.

Essa perspectiva serviu não apenas para desarmar a classe trabalhadora cubana – que nunca teve seus próprios organismos de poder –, também desarmou a classe trabalhadora internacional ao apoiar indiscriminadamente o stalinismo e as organizações nacionalistas pequeno-burguesas, que, assim, aumentaram sua influência sobre as massas. Dessa forma, portanto, o pablismo emergiu como uma agência secundária do imperialismo, cujo papel tornou-se cada vez mais importante diante do descrédito cada vez maior dos velhos aparelhos burocráticos aos olhos da classe trabalhadora e da juventude.

Isso foi confirmado no Sri Lanka apenas um ano depois da unificação entre o SWP e os pablistas. Em 1964, um partido trotskista com influência de massas, o Partido Lanka Sama Samaja (LSSP), formou um governo burguês de coalizão com um partido nacionalista, o Partido da Liberdade do Sri Lanka. O preço pago pelo LSSP por entrar no governo foi abandonar a minoria tâmil do país em favor do chauvinismo cingalês. O país continua a sofrer as consequências dessa traição, que reforçou a discriminação da minoria tâmil e conduziu à sangrenta guerra civil que o atormenta há três décadas.

Os pablistas também protagonizaram um papel crucial na França, ajudando a manutenção do Estado burguês em 1968. Examinando o seu papel em eventos-chave, duas coisas ficam evidentes: sua postura apologética em relação ao stalinismo e suas adaptações indiscriminadas às teorias anti-marxistas da Nova Esquerda (New Left), que predominavam no meio estudantil.

Alain Krivine e a JCR

A Quarta Internacional teve influência considerável na França no fim da Segunda Guerra Mundial. Em 1944, o movimento trotskista francês, que tinha rachado durante a guerra, reuniu-se para formar o Parti Communiste Internationaliste (PCI – Partido Comunista Internacionalista). Dois anos depois, o PCI tinha aproximadamente 1.000 membros e lançou 11 candidatos nas eleições parlamentares, que receberam entre 2% e 5% dos votos. O jornal da organização, La Vérité, era vendido nas bancas e desfrutava de um grupo amplo de leitores. Sua influência estendeu-se a outras organizações; todas as lideranças da organização socialista da juventude, com o total de 20.000 membros, apoiavam os trotskistas. Membros do PCI cumpriram uma importante função no movimento de greve que abalou o país e forçou o PCF a deixar o governo em 1947.

Nos anos seguintes, no entanto, a orientação revolucionária do PCI sofreu repetidos ataques de elementos de suas próprias fileiras. Em 1947, a social-democrata (Section Française de l’Internationale Ouvrière (SFIO – Seção Francesa da Internacional Operária) virou rapidamente para a direita, dissolveu sua organização de juventude e expulsou seu líder trotskista. A ala direita do PCI, liderada por Yvan Craipeau, secretário do partido na época, respondeu com o abandono de qualquer perspectiva revolucionária. Um ano depois, essa mesma ala foi expulsa por defender a dissolução do PCI em um movimento amplo de esquerda, a Rassemblement Démocratique Révolutionnaire (RDR – Aliança Democrática Revolucionária), liderado pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre. Muitas das figuras da direção da ala expulsa, incluindo o próprio Craipeau, ressurgiram mais tarde no PSU.

No mesmo ano, 1948, outro grupo – Socialisme ou barbarie (Socialismo ou Barbárie), encabeçado por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort – deixa o PCI. Esse grupo, diante do início da Guerra Fria, rejeitou as análises de Trotsky sobre a União Soviética enquanto um Estado Operário degenerado, argumentando que o regime stalinista representava uma nova classe dentro de um sistema de “capitalismo burocrático”. Baseado nesse ponto de vista, o grupo desenvolveu inúmeras posições hostis em relação ao marxismo. Os textos do Socialisme ou barbarie tinham influência considerável no movimento estudantil. Um de seus membros, Jean François Lyotard, mais tarde desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento de ideologias associadas ao pós-modernismo.

O maior golpe no movimento trotskista francês, entretanto, foi dado pelo pablismo. O PCI foi enfraquecido, organizativa e politicamente, pela política liquidacionista de Michel Pablo, bem como pela subsequente expulsão da maioria da seção pela minoria pablista. A maioria do PCI, dirigida por Pierre Lambert, será objeto da parte final dessa série de artigos. A minoria pablista, dirigida por Pierre Frank, centrou-se, após o racha, no apoio prático e logístico ao movimento de libertação nacional, a FLN, durante a guerra da Argélia. Durante a década de 1960, tinha perdido grande parte de sua influência dentro das fábricas. Entretanto, era apoiada em círculos estudantis e desempenhou uma função importante entre essas camadas em 1968. Seu dirigente, Alain Krivine, foi uma das caras mais conhecidas na revolta estudantil, lado a lado com o anarquista Daniel Cohn-Bendit e o maoísta Alain Geismar.

Krivine tinha se juntado à juventude stalinista em 1955, com 14 anos, e, em 1957, fazia parte da delegação oficial que cuidaria de um festival da juventude em Moscou. Segundo sua autobiografia, lá ele conheceu membros da FLN argelina e desenvolveu uma atitude crítica das políticas do Partido Comunista em relação à Argélia. Um ano depois, ele começou a colaborar com o PCI pablista a respeito da questão argelina. Krivine alega que inicialmente ele desconhecia os antecedentes do PCI, o que é bastante improvável, uma vez que dois de seus irmãos faziam parte da direção desta organização. De qualquer forma, ele se uniu ao PCI, o mais tardar em 1961, ao mesmo tempo em que oficialmente continuava atuando na organização estudantil stalinista, a UEC.

Krivine ascendeu rapidamente na direção do PCI e do Secretariado Unificado. Com 24 anos, em 1965, já estava no topo da liderança do partido, o Bureau Político, juntamente de Pierre Frank e Michel Lequenne. No mesmo ano, ele foi nomeado ao comitê executivo do Secretariado Unificado como substituto de Lequenne.

Em 1966, a seção de Krivine da UEC na Universidade de Paris (La Sorbonne) foi expulsa pela liderança stalinista por se recusar a apoiar a aliança ao candidato presidencial da esquerda, François Mitterrand. Junto com outras seções rebeldes da UEC, Krivine constrói a Jeunesse Communiste Révolutionnaire (JCR – Juventude Comunista Revolucionária), que era composta quase exclusivamente de estudantes e, diferentemente do PCI, não se demonstrava comprometida com o trotskismo. A JCR e o PCI, em abril de 1969, um ano depois de serem dissolvidas pelo Ministro do Interior, se unem para formar a Ligue Communiste (Liga Comunista). A partir de 1974, ela passa a se chamar (Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR – Liga Comunista Revolucionária).

Olhando para o passado, Krivine tenta apresentar a JCR de 1968 como uma organização nova e inocente, caracterizada pelo grande entusiasmo e pela pouca experiência política: “Nós éramos uma organização de algumas centenas de membros, onde a média de idade correspondia à maioridade legal da época: 21 anos. É importante salientar que, impulsionados pelas tarefas mais importantes, de um encontro e de uma manifestação a outra, nós não tínhamos tempo de considerar todos os aspectos das coisas. Em vista das nossas modestas forças, nós nos sentimos em casa nas universidades, greves e nas ruas. A solução do problema governamental ocorreu em outro nível, onde tínhamos apenas uma pequena influência”. [2]

Na verdade, tais alegações não se sustentam. Com 27 anos em 1968, Alain Krivine continuava relativamente jovem, mas já tinha adquirido experiência política considerável. Ele tinha conhecimento das organizações stalinistas e, como um membro do Secretariado Unificado, estava totalmente familiarizado com os conflitos internacionais internos ao movimento trotskista. Nessa época, ele já havia deixado a universidade, mas então retornou para liderar as atividades da JCR.

A atividade política da JCR não era orientada, em maio-junho de 1968, pela inexperiência juvenil, mas, muito pelo contrário, pela linha política pablista, desenvolvida em anos de luta contra o trotskismo ortodoxo. Quinze anos depois de sua ruptura com a Quarta Internacional, o Secretariado Unificado não mudou somente sua orientação política, mas também sua orientação social. Não era mais um movimento proletário, mas um movimento pequeno-burguês. Por uma década e meia, os pablistas pediram favores aos carreiristas dos aparelhos stalinistas e reformistas, assim como cortejaram vários movimentos nacionalistas. A orientação social desses movimentos tornou-se uma segunda natureza dos próprios pablistas. O que começou como uma revisão teórica do marxismo tornou-se uma parte orgânica de sua fisionomia política – isto na medida em que é permitido transferir, para a esfera da política, termos da fisiologia.

Marx, ao tirar as lições da derrota das revoluções europeias de 1848, distinguiu a perspectiva da pequena-burguesia daquela da classe trabalhadora da seguinte maneira: “Os pequeno-burgueses democratas, muito longe de pretenderem transformar toda a sociedade em benefício dos proletários revolucionários, aspiram a uma alteração das condições sociais que lhes torne tão suportável e cômoda quanto possível a sociedade existente.” [3] Essa caracterização aplicou-se integralmente aos pablistas em 1968. Isso ficou evidente a partir de suas atitudes acríticas em relação aos anarquistas e a outros movimentos da pequena-burguesia, que Marx e Engels tinham combatido de forma intransigente desde cedo. Também ficou evidente na forma com que eles se prendiam – e ainda se prendem – a questões de raça, gênero e orientação sexual; assim como seu entusiasmo diante dos líderes dos movimentos nacionalistas, que desprezam a classe trabalhadora e – como era o caso dos populistas russos, combatidos por Lenin – a orientava em direção à pequena-burguesia rural.

“Mais guevarista do que trotskista”

Acima de tudo, a JCR de Krivine era caracterizada por seu completo e acrítico apoio à liderança cubana – a questão que esteve no cerne da unificação de 1963. O autor de uma história da LCR, Jean-Paul Salles, refere-se à “identidade de uma organização que, antes de maio de 68, aparentava em muitos aspectos mais guevarista do que trotskista”. [4]

No dia 19 de outubro de 1967, dez dias após o assassinato de Che Guevara na Bolívia, a JCR, organizou um encontro-comemoração em sua homenagem na Paris Mutualité. O retrato de Guevara era difundido nos encontros da JCR. Em sua autobiografia de 2006, Alain Krivine escreve: “Nosso mais importante ponto de referência em relação às lutas de libertação nos países do terceiro mundo era, sem dúvida, a revolução cubana, o que nos fez sermos chamados de ‘trotskistas-guevaristas’... Particularmente, Che Guevara incorporou em nossos olhos o ideal do combatente revolucionário”. [5]

Com sua glorificação de Che Guevara, a LCR esquivou-se de problemas urgentes, ligados à construção da direção da classe trabalhadora. Se há um único denominador comum a ser encontrado na agitada vida do revolucionário argentino-cubano, certamente é sua resoluta hostilidade à independência política da classe trabalhadora. Em vez disso, ele defendia que uma minoria armada – um foco guerrilheiro operando nas áreas rurais – poderia dirigir uma revolução socialista, independentemente da classe trabalhadora. Para isso, não seria necessária uma perspectiva política ou teórica. A ação e o desejo de um pequeno grupo seriam cruciais. Era negada, dessa forma, a capacidade da classe trabalhadora e das massas oprimidas em atingir consciência política e conduzir sua própria luta pela emancipação.

Em janeiro de 1968, o jornal da JCR, Avant-Garde Jeunesse, propagandeou as concepções de Guevara da seguinte maneira: “Independentemente das circunstâncias atuais, os guerrilheiros são convocados a desenvolverem-se, até que, depois de um período mais longo ou mais curto, sejam capazes de atrair toda a massa dos explorados para uma luta frontal contra o regime”.

Entretanto, a estratégia de guerrilha defendida por Guevara na América Latina não poderia ser tão facilmente transferida para a França. Em vez disso, Mandel, Frank e Krivine atribuíram o papel de vanguarda aos estudantes. Eles glorificaram as atividades espontâneas dos estudantes e suas batalhas de rua com a polícia. As concepções de Guevara serviram para justificar o ativismo cego, livre de qualquer orientação política séria. Para isso, o pablistas adaptaram completamente teorias antimarxistas da Nova Esquerda (New Left), que influenciaram enormemente os estudantes, bloqueando, assim, o caminho para uma verdadeira orientação marxista.

Raramente era possível distinguir politicamente o “trotskista” Alain krivine, o anarquista Daniel Cohn-Bendit, o maoísta Alain Geismar e outros líderes estudantis que se destacaram nos eventos de 1968. Eles apareceram lado a lado nos conflitos de rua que aconteceram no Quartier Latin. Como escreve Jean-Paul Salles: “Durante a segunda semana de maio, membros da JCR, ao lado de Cohn-Bendit e os anarquistas, estavam na linha de frente e participaram de todas as manifestações – incluindo a Noites das Barricadas”. [6] No dia 9 de maio, a JCR presidiu um encontro – preparado muito antes na Mutualité – que ocorreu no Quartier Latin, cenário dos mais violentos conflitos de rua no momento. Mais de 3.000 participaram do encontro, e um dos principais oradores foi Daniel Cohn-Bendit.

No mesmo período, na América Latina, o Secretariado Unificado apoiou incondicionalmente a estratégia de guerrilha de Che Guevara. Em seu 9º Congresso Mundial, realizado em maio de 1969, na Itália, o SU instruiu suas seções sul-americanas a seguir o exemplo de Che Guevara e unir-se aos seus apoiadores. Isso significou o abandono da base urbana da classe trabalhadora em favor da guerrilha armada, com a defesa de que a luta seria levada para a cidade através da base rural. Ernest Mandel, Pierre Frank e Alain Krivine estavam entre a maioria dos delegados do congresso que aprovaram essa estratégia. Eles a mantiveram resolutamente por nada menos que dez anos, embora tenha sido fonte de controvérsias dentro do Secretariado Unificado à medida que suas consequências catastróficas tornavam-se mais claras. Milhares de jovens que assumiram essa orientação, e tomaram o caminho da luta de guerrilha, sacrificaram suas vidas. Ao mesmo tempo, a ação das guerrilhas – sequestros, raptos e violentos ataques contra o exército – serviu apenas para desorientar politicamente a classe trabalhadora.

Os estudantes como “vanguarda revolucionária”

Um longo artigo escrito por Pierre Frank no começo de junho de 1968 – pouco antes da dissolução da JCR pelo governo – evidencia a postura totalmente acrítica dos pablistas a respeito do papel protagonizado pelos estudantes nos eventos de maio.

“A vanguarda revolucionária em maio é atribuída geralmente à juventude”, escreveu Frank, e acrescentou: “A vanguarda, que era politicamente heterogênea e onde somente as minorias eram organizadas, tinha, sobretudo, um alto nível político. Ela reconheceu que o objeto do movimento era a derrubada do capitalismo e o estabelecimento de uma sociedade socialista em construção. Reconheceu, também, que as políticas de ‘vias passivas e parlamentares ao socialismo’ e de ‘coexistência pacífica’ eram a traição do socialismo. Rejeitou todo o nacionalismo pequeno-burguês e expressou seu internacionalismo da forma mais notável. Tinha uma consciência anti-burocrática forte e uma feroz determinação da democracia em suas fileiras.” [7]

Frank foi longe o suficiente ao descrever a Sorbonne como a “forma mais desenvolvida de dualidade de poder”, bem como “o primeiro território livre da República Socialista da França”. Ele continuou: “A ideologia que inspira a oposição dos estudantes à sociedade de consumo neocapitalista, os métodos que usaram em suas lutas, como também os lugares que ocuparam e ocuparão na sociedade (que fará, da maioria deles, empregados de “colarinho branco” do Estado ou dos capitalistas) deram a essa luta uma eminência socialista, revolucionária e um caráter internacionalista.” A luta dos estudantes demonstrou ter “um alto nível político em um sentido revolucionário marxista”. [8]

Na realidade, nem havia traço de consciência revolucionária no sentido marxista em boa parte dos estudantes. As concepções políticas que prevaleceram entre os estudantes tinham sua origem no arsenal teórico da então chamada Nova Esquerda (New Left), e foram desenvolvidas durante muitos anos em oposição ao marxismo.

A historiadora Ingrid Gilcher-Holtev escreve o seguinte sobre o movimento de 1968 na França: “Os grupos estudantis que dirigiam o processo se baseavam expressamente nos mentores intelectuais da Nova Esquerda – ou eram influenciados por seus temas e suas críticas –, particularmente pelos escritos da ‘Internacional Situacionista’, o grupo em torno do ‘Socialisme ou barbarie’ e do ‘Arguments.’ Sua dupla estratégias de ação (direta e provocadora), e sua própria concepção (antidogmática, anti-burocrática, anti-organizativa, antiautoritária) inseriram-se no sistema de orientações da Nova Esquerda.” [9]

Ao invés de caracterizar a classe trabalhadora como classe revolucionária, a Nova Esquerda viu os trabalhadores como uma massa atrasada, completamente integrados à sociedade burguesa via consumo e mídia. Ao invés da exploração capitalista, a Nova Esquerda dava ênfase ao papel de alienação em suas análises sociais – interpretando-a num restrito senso psicológico e existencialista. A “revolução” seria dirigida não pela classe trabalhadora, mas por uma vanguarda intelectual e grupos à margem da sociedade. Para a Nova Esquerda, as forças motrizes não eram as contradições entre as classes da sociedade capitalista, mas “o pensamento crítico” e as atividades de uma elite esclarecida. O objetivo da revolução não era a transformação das relações de propriedade e de poder, mas mudanças sociais e culturais, assim como as alterações nas relações sexuais. Segundo representantes da Nova Esquerda, tais mudanças culturais eram pré-requisito para uma revolução social.

Dois dos mais conhecidos líderes estudantis na França e Alemanha, Daniel Cohn-Bendit e Rudi Dutschke, eram ambos influenciados pela “Internacional Situacionista”, que propagandeava a mudança de consciência através de ações provocativas. Originalmente formados por um grupo de artistas com raízes nas tradições do Dadaísmo e do Surrealismo, os situacionistas enfatizaram a importância de atividades práticas. Como um recente artigo sobre os situacionistas colocou: “Rompimento ativista, radicalização, crueldade, valorização e reproduções humoradas das situações concretas do dia-a-dia, são os meios para elevar e permanentemente revolucionar a consciência daqueles que estão na segurança onipotente do profundo sono que resulta de todo o tédio difundido”. [10]

Tais pontos de vistas estão anos-luz distantes do marxismo. Eles negam o papel revolucionário da classe trabalhadora, papel enraizado em suas posições numa sociedade caracterizada por conflitos de classes insuperáveis. A força motriz da revolução é a luta de classes, que está objetivamente posta. Consequentemente, a tarefa dos revolucionários marxistas não é a de chocar a classe trabalhadora com atividades provocativas, mas a de elevar sua consciência política, oferecendo uma direção revolucionária capaz de habilitá-los a assumirem a responsabilidade pelo seu próprio destino.

Os pablistas não apenas declararam que os grupos anarquistas, maoístas e pequeno-burgueses que desempenharam um papel de liderança no Quartier Latin tinham “um alto nível político em um sentido revolucionário marxista” (Pierre Frank), como defenderam seus pontos-de-vista e tomaram parte em suas atividades aventurosas com entusiasmo.

Os conflitos de rua inspirados pelos anarquistas no Quartier Latin em nada contribuíram para a educação política dos trabalhadores e dos estudantes, assim como nunca foram uma séria ameaça ao Estado francês. Em 1968, o Estado tinha um moderno aparato policial e um exército forjado no curso de duas guerras coloniais, e poderia, também, contar com o apoio da OTAN. Não seria derrubado pelo tipo de tática revolucionária usada no século XIX – ou seja, a construção de barricadas nas ruas da capital. Embora as forças de segurança fossem responsáveis pelos gigantescos níveis de violência que caracterizavam os conflitos de rua no Quartier Latin, havia um inegável elemento de infantilidade revolucionária e romântica no modo como os estudantes montavam vorazmente as barricadas e brincavam de gato e rato com a polícia.

Continua

Referências

1. Zancarini-Fournel, Michelle. 1962-1968: Le champ des possibles. In: 68: Une histoire collective. Paris: 2008.

2. Bensaid, Daniel; Krivine, Alain. Mai si! 1968-1988: Rebelles et repentis. Montreuil: 1988, p. 39.

3. Marx, Karl; Engels, Friedrich. Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas

4. Salles, Jean-Paul. La Ligue communiste révolutionnaire. Rennes: 2005, p. 49.

5. Krivine, Alain. Ça te passera avec l’âge. Flammarion: 2006, pp. 93-94.

6. Salles. Idem, p. 52.

7. Frank, Pierre. Mai 68: première phase de la révolution socialiste française

8. Idem.

9. Gilcher-Holtey, Ingrid. Mai 68 in Frankreich. In: 1968: Vom Ereignis zum Mythos. Frankfurt am Main: 2008, p. 25.

10. archplus 183. Zeitschrift für Architektur und Städtebau. Maio de 2007.

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