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Crise política argentina aprofunda-se com tentativa de assassinato da vice-presidente Cristina Kirchner

Publicado originalmente em 6 de setembro de 2022

Na última sexta-feira, 2 de setembro, um extremista de direita tentou por duas vezes disparar uma arma a poucos centímetros do rosto da vice-presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, que governou o país de 2007 a 2015, após um mandato presidencial de seu falecido marido, Néstor Kirchner.

O atirador foi identificado como Fernando Andrés Sabag Montiel, 35 anos de idade. Nascido no Brasil, ele é naturalizado e residente argentino desde 1993.

As imagens da tentativa de assassinato mostram que Montiel tem uma série de tatuagens nazistas, e ele foi identificado pelas autoridades como um simpatizante da extrema-direita. Até agora, a polícia não revelou nenhum vínculo organizacional mais amplo.

Ontem, a juíza encarregada do caso decretou o sigilo da investigação logo após ordenar a prisão da namorada de Montiel, Brenda Uliarte, de 23 anos, identificada como apoiadora do congressista de extrema-direita argentino Javier Milei, um apoiador da ditadura militar-fascista de 1976-1983 no país. Pouco depois do ataque, Uliarte publicou um vídeo nas redes sociais dissociando-se dele, mas manifestando-se furiosamente contra a “corrupção”, em um endosso tácito da ação.

Também no dia de ontem, o Ministro da Segurança Aníbal Fernández colocou seu cargo à disposição do Presidente Alberto Fernández, após a revelação de que o celular do atirador teve todos os dados apagados sob circunstâncias desconhecidas após sua apreensão pelas forças de segurança.

A tentativa de assassinato ocorreu em meio a uma extraordinária crise política. Em 22 de agosto, Kirchner foi acusada de corrupção no chamado caso “Vialidad”, em que procuradores alegam que ela favoreceu uma empresa de construção fraudulenta em dezenas de obras públicas em sua província natal de Santa Cruz, na Patagônia, durante seus mandatos entre 2007 e 2015. O Ministério Público pediu uma sentença de 12 anos de prisão e proibição de ocupar cargos políticos.

O assassino se infiltrou em uma multidão de apoiadores que, desde que a acusação foi divulgada, mantêm uma vigília embaixo de seu apartamento particular no abastado bairro da Recoleta, e a cumprimentavam quando ela voltava para casa.

Minutos após o ataque, o Presidente Alberto Fernández decretou um feriado para o dia seguinte e pediu aos argentinos que apoiassem a “democracia” e repudiassem o ataque. As autoridades informam que 500.000 pessoas se manifestaram contra o ataque em frente ao palácio presidencial, a Casa Rosada, no sábado.

A tentativa de assassinato e o processo contra Kirchner, uma ex-presidente associada à chamada “Maré Rosa” de governos nacionalistas-burgueses na América do Sul no início dos anos 2000, ocorre no contexto de uma esmagadora crise social e política no país. A crise provocou uma hemorragia no apoio ao governo peronista do Partido Justicialista, que perdeu o controle do Senado argentino pela primeira vez nos seus 80 anos de história no ano passado. A crise também viu a extrema-direita, liderada por Milei, receber 1 milhão de votos e entrar no Congresso pela primeira vez.

Em agosto, a Argentina sofreu uma forte aceleração da inflação mensal para 7,4%, colocando a inflação anual em um caminho para superar os 90% até o final do ano, e potencialmente atingir três dígitos – a mais alta do mundo. A pobreza mantém-se em mais de 40%, com pouco menos de 10% dos argentinos enfrentando a insegurança alimentar. Um recente relatório da organização humanitária Cáritas revelou que 60% dos argentinos foram pobres em algum momento durante os últimos 10 anos, e 30% deles mantiveram-se na pobreza durante todo o período dos últimos 10 anos.

Enquanto isso, a inflação é agravada pela especulação criminosa dos grandes produtores de soja, trigo e milho, que têm retido grãos do mercado apostando que o governo será obrigado a desvalorizar a moeda nacional, o peso, levando eventualmente a uma explosão dos lucros com exportações.

A resposta política dos peronistas à catástrofe social tem sido completamente reacionária. Tendo perdido mais de 6 milhões de votos entre 2019, quando foi devolvido ao poder, e as eleições parlamentares de meio de mandato de 2021, o governo caminhou firmemente para a direita, renunciando a cada uma de suas promessas eleitorais a fim de cumprir com os compromissos de um gigantesco empréstimo de US$ 45 bilhões do FMI.

Pouco antes da acusação contra Kirchner, em 3 de agosto, o dividido Partido Justicialista havia concordado com a nomeação do Presidente da Câmara, Sérgio Massa para um novo “superministério” econômico, colocando sob seu controle as pastas de Desenvolvimento e Agricultura, Grãos e Pesca. Massa, um ex-peronista de direita e queridinho dos grande capitalistas, tornou-se o terceiro Ministro da Economia em um mês após Silvina Batakis, nomeada por Kirchner, ter renunciado menos de um mês depois de tomar posse. A nomeação de Massa fez do Presidente Fernández praticamente uma figura decorativa.

Um dos primeiros anúncios de Massa foi o fim de subsídios à energia e à água equivalentes a 1,0% do PIB, numa tentativa de trazer o deficit orçamentário para menos de 2,5% do PIB no próximo ano e cumprir as condições ditadas pelo FMI. Ainda ontem, Massa anunciou que o governo permitirá que os grandes exportadores de grãos negociem dólares à taxa de 200 pesos para um, enquanto o câmbio oficial da moeda está em apenas 130 pesos para um, proporcionando ao grande capital agroexportador os lucros excepcionais que eles exigiram, à custa da fome generalizada. A taxa de câmbio especial está sendo justificada como um meio de reconstruir as reservas de moeda estrangeira do país e estabilizar o peso, o que o governo alega que eventualmente colocará a inflação sob controle. A medida foi anunciada menos de 24 horas antes de uma viagem de Massa para Washington para receber novas ordens do FMI.

Sob tais condições, a possível candidatura presidencial de Kirchner nas eleições de 2023 se tornou um assunto cada vez mais urgente para a classe dominante argentina. Nos teatros políticos quase ritualísticos do peronismo, Kirchner tem sido crítica do acordo com o FMI, acusando o presidente Fernández de não estar “à altura da tarefa” de conduzir a Argentina para fora da crise. Por mais de dois anos, ela tem feito declarações públicas contra as políticas do executivo, e seu filho, Máximo, líder do bloco peronista na Câmara, renunciou à liderança em março alegando que não estava “apto” a conduzir a bancada peronista na votação das medidas exigidas pelo FMI, porque não acreditava nelas. Pouco depois, o acordo atualmente cumprido por Massa foi aprovado com os votos de sua minúscula bancada da Frente de Renovadora, e da oposição, incluindo os tradicionais opositores eleitorais do peronismo, a centenária União Cívica Radical.

Kirchner tem se empenhado em ser fotografada ao lado de Massa durante o expediente, tentando reivindicar o crédito por quaisquer ganhos que ele possa obter na restauração da “confiança” dos soberanos imperialistas da classe dominante argentina, enquanto mantém uma distância segura da brutal austeridade, de modo que possa mais uma vez reivindicar o manto há muito já esgarçado do nacionalismo e reformismo peronista.

Após ser indiciada há quinze dias, Kirchner rapidamente apontou para as conexões pessoais de promotores e juízes com seu sucessor direitista bilionário, o ex-presidente Mauricio Macri, que arquitetou o atual acordo com o FMI. Sua defesa trouxe à tona inúmeras fotos da equipe de acusação desfrutando de festas em propriedades opulentas de Macri, que deveriam desqualificá-los do caso, mas foram ignoradas pelos tribunais.

Ao mesmo tempo, ela alegou que o verdadeiro alvo dos promotores era o “peronismo” e os direitos sociais dos trabalhadores, tendo sido o caso inventado para prejudicar suas perspectivas eleitorais. Como vice-presidente e líder do Senado, ela goza de ampla imunidade. Mesmo que o caso chegue a uma conclusão rápida, qualquer execução da sentença contra ela requer uma maioria de dois terços do Senado, a qual os peronistas podem facilmente barrar, exceto por um golpe interno no partido. Entretanto, as acusações terão impacto em sua autoridade política, inclusive dentro das desleais disputas políticas peronistas, possivelmente abrindo o caminho para um alinhamento mais aberto com o programa do Massa.

Não há dúvida de que o peronismo, como parte integrante da corrupta máquina estatal burguesa argentina, cometeu e está atualmente envolvido em inúmeros crimes contra a classe trabalhadora – entre os quais a austeridade ditada pelo FMI é um dos mais brutais. Ao mesmo tempo, sua retórica populista atrai a ira dos elementos mais inescrupulosos da classe dominante, que temem que o partido possa perder o controle sobre os trabalhadores politicamente encurralados em seus inúmeros sindicatos e “organizações de base” corruptos. Isto ficou inteiramente claro com a ofensiva contra Kirchner tanto por procuradores quanto por um atirador fascista em um espaço de tempo tão curto.

Além disso, a sinistra revelação da perda de dados críticos para a solução do caso, os registros no telefone do atirador, levanta sérias questões sobre o envolvimento das próprias forças de segurança no ataque, seja em colaboração direta ou acobertamento.

A ascensão da extrema-direita não é, de forma alguma, um fenômeno exclusivo da Argentina. Pelo contrário, tem sido a regra em todos os países, com as classes dominantes preparando-se para afogar em sangue a crescente oposição dos trabalhadores à guerra, à desigualdade, à pobreza e à morte e incapacitação em massa causadas de forma desnecessária pela pandemia da COVID-19. Como partido capitalista, o peronismo teme a ação independente dos trabalhadores infinitamente mais do que a violência fascista. E já o demonstrou exterminando sua própria ala esquerda sob o governo de Isabel Perón em 1975-1976, decapitando a classe trabalhadora e deixando-a indefesa diante do golpe militar-fascista de 1976, que levou a dezenas de milhares de assassinatos políticos.

A crise política atual torna ainda mais urgente que os trabalhadores argentinos rompam com o peronismo e todos os seus apoiadores pseudoesquerdistas, como a Frente Pátria Grande de Juan Grabois e a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores – Unidade (FIT-U), e construam uma nova direção política socialista e internacionalista – uma seção argentina do Comitê Internacional da Quarta Internacional.

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